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quarta-feira, 7 de julho de 2010

JURID - ACP. Registro profissional [07/07/10] - Jurisprudência


Justiça Federal determina que municípios do interior do Estado do Acre parem de contratar médicos sem registro no Conselho Regional de Medicina



JUSTIÇA FEDERAL

SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO ACRE


Autos: 5037-15.2010.4.01.3000/3ª vara
Classe: 7100 - Ação Civil Pública
Requerentes: Conselho Federal de Medicina e outro
Réus: Município de Porto Acre e outros
Juiz Federal: Jair Araújo Facundes


DECISÃO

"MÉDICOS" SEM REGISTRO. DIPLOMA NÃO CONVALIDADO. EXIGÊNCIA SUBSTANCIAL. EXERCÍCIO ILEGAL DA MEDICINA. CAOS NO SISTEMA DE SAÚDE E O ARGUMENTO AD TERROREM. PONDERAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.


Submeter populações pobres e distantes a profissionais sem qualificação mínima curricular comprovada viola o dever do Estado, por seus governantes, de tratar a todos com a mesma consideração e respeito.

A exigência de registro dos profissionais de medicina e de convalidação dos diplomas não se configura em mera formalidade. Objetiva comprovar a qualificação mínima para o exercício da medicina enquanto profissão regulamentada, além de expressar, pelo Governo, respeito e idêntica consideração que aos cidadãos.

O caos no sistema de saúde não advirá da exclusão de profissionais sem qualificação comprovada. Advém do oferecimento de serviço essencial sem qualidade.

Impossibilidade de ponderação.

1. O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina do Estado do Acre ajuizaram a presente ação civil pública em face dos municípios de Porto Acre, Acrelândia, Feijó e Manoel Urbano, objetivando, liminarmente, que os réus "suspendam de forma imediata o exercício das atividades de profissionais não registrados no CRM, bem como se abstenham de contratar pessoas que não estejam devidamente registradas junto ao Conselho Fiscalizador", fl. 23.

2. Alegaram, em síntese, que os requeridos com base em Termos de Ajuste de Conduta firmados com o Ministério Público Estadual, têm contratado pessoas sem a devida habilitação e registro profissional para realização de atendimento médico e que tal conduta gera riscos à população, viola direito fundamental à saúde, permite o exercício ilegal da medicina, o provimento de cargos sem concurso público, a aplicação inadequada de recursos do Sistema Único de Saúde, bem como o tratamento desigual de nacionais e de estrangeiros que observaram todas as exigências legais.

3. Segundo os requerentes, a fumaça do bom direito estaria caracterizada, sobretudo porque os artigos 2º e 4º do Decreto 20.931/32, o artigo 17 da Lei 3.268/57 e o § 2º do art. 48 da Lei 9.394/96 exigem para exercício da medicina prévio registro no conselho de fiscalização profissional, bem como revalidação do diploma obtido no exterior. O perigo da demora decorreria da necessidade de evitar danos aos usuários dos serviços de saúde.

4. A inicial foi instruída com documentos, autuados em anexo.

5. Foi facultada a manifestação dos requeridos no prazo de 72 horas, fl. 74. O Município de Acrelândia alegou que reduziu a quantidade de médicos em situação irregular à metade, que rescindiria todos os contratos irregulares se houvesse profissionais com inscrição no Conselho que concordassem em realizar as atividades do Programa de Saúde da Família e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família com os salários oferecidos atualmente e que realizará concurso público de provas e títulos em setembro deste ano, fls. 88/94.

6. O Município de Feijó alegou que iniciou tratativas com o autor, mas que seriam necessários aproximadamente 6 meses para solucionar o problema.

Argumentou que estaria presente o perigo da demora inverso, pois a população humilde e carente seria penalizada, fls. 96/99.

7. O Município de Porto Acre alegou que a situação irregular não decorre da vontade do gestor público, mas da necessidade de atender a população, aliada à ausência de médicos com registro no Conselho Regional de Medicina interessados em exercer a medicina na região, inclusive em áreas rurais de difícil acesso. Argumentou, com base nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que seria preferível contratar médicos sem registro no CRM do que negar à população acesso à saúde, fls. 101/4.

8. Relatado. Decido.

9. Pretendem os autores a paralisação imediata das atividades de médicos não registrados no Conselho Regional de Medicina e que os réus se abstenham de contratar novos médicos em situação irregular.

10. Não há controvérsia acerca dos fatos. Sabe-se que há pessoas graduadas em medicina em faculdades estrangeiras atuando no interior do Estado do Acre, sem a revalidação do diploma e sem registro no conselho profissional.

Portanto, a divergência restringe-se à questão jurídica. Mas nesse campo também há convergências. Por exemplo, as partes estão cientes que a Constituição Federal confere proteção à saúde pública em diversos dispositivos, especialmente em seu art. 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

11. As partes também não desconhecem a exigência de revalidação de diploma obtido no exterior, nos termos do art. 48, § 2º da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), e a proibição ao exercício ilegal da medicina, conforme previsto no art. 5º, XIII, da Constituição Federal, combinado com art. 17 da Lei 3.268/57, estando este último dispositivo assim redigido:

Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade.

12. Os requerentes sustentam que a saúde das pessoas residentes em Acrelândia, Feijó, Manoel Urbano e Porto Acre estaria melhor protegida se fossem suspensos os termos de ajuste de conduta firmados com o Ministério Público do Estado do Acre, com a imediata paralisação das atividades dos médicos que não possuem diploma revalidado no país nem registro no conselho profissional. Os requeridos discordam.

13. Do direito constitucional, ápice do ordenamento jurídico e do qual as normas de hierarquia inferior extraem sua legitimidade, insta destacar que o povo, por seus representantes, elegeu a saúde como um dos direitos sociais e a cercou de garantias. Na esteira dessa decisão política fundamental, o legislador ordinário e o administrador criaram regras legais e regulamentares visando detalhar tais garantias. Dentre estas, encontra-se a exigência de diploma de médico devidamente revalidado por universidade brasileira e inscrição no órgão fiscalizador da profissão.

14. Os requerentes mencionaram precedentes jurisprudenciais, merecendo destaque a decisão proferida pelo Juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária de Tocantins na Ação Civil Pública 2004.43.00.001126-1:

(...) Concedo a pretendida antecipação dos efeitos da tutela para determinar ao Estado do Tocantins que adote as seguintes providências: 1) ABSTENHA-SE de contratar, a artir desta data, médicos estrangeiros sem revalidação de seus diplomas e/ou sem registro no Conselho Regional de Medicina; 2) SUSPENDA, no prazo máximo de seis meses a contar desta decisão, o exercício da medicina por profissionais estrangeiros já contratados (...) (Petição inicial, fl. 23)

15. Analisando-se o dispositivo da sentença acima transcrito, vê-se que a decisão vedou a contratação de médicos estrangeiros sem revalidação de diploma e sem registro no conselho, mas não determinou o imediato afastamento dos médicos contratados nessa situação, fixando prazo de seis meses para que a Administração os substituísse. Aliás, atendendo requerimento formulado pelo Estado do Tocantins, o magistrado deferiu a prorrogação do exercício da medicina pelas pessoas não registradas no conselho profissional.

Um falso dilema

16. Nos termos de ajuste de conduta há expressão que bem sintetiza como a questão tem sido avaliada, ou seja, como uma escolha entre não ter médico e ter médico sem diploma reconhecido.

17. A controvérsia foi, em parte, assim debatida junto ao TRF 1. Embora não haja referência na peça inicial, a Presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região cassou a antecipação dos efeitos da tutela concedida pelo Juízo de 1ª instância acima transcrita (Suspensão de Segurança 2005.01.00.022014-3/TO).

Em sua decisão, o Presidente do Tribunal ponderou que "se, por um lado, preocupa o exercício da medicina por profissionais ainda não credenciados pelo órgão fiscalizador, por outro, tem relevância constitucional a continuidade da prestação do serviço de saúde pública naquele Estado e já tão deficiente no país".

18. A Corte Especial do Tribunal, em julgamento não unânime, deu provimento ao agravo regimental interposto em face da decisão da Presidência, tornando sem efeito este ato, restabelecendo o quanto decidido pelo magistrado de primeira instância. No voto, vencido, do Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, são apresentados traços da precária situação saúde pública existente no interior do Brasil: Quanto ao mérito do recurso, entendo que deve ser mantida a decisão que suspendeu a antecipação da tutela (...) Também com relação à necessidade de médicos, foi dito aqui que é fácil ao Estado prover esses cargos com médicos brasileiros, oferecendo bons salários. Creio que não seja tão fácil assim, porque os estados estão carentes de recursos financeiros para isso. Lembro-me que li no noticiário, na época, desta decisão liminar, que o Estado de Tocantins oferecia salários de até cerca de R$ 8.000,00 (oito mil reais) para médicos no interior, e não encontrou interessados. Observe-se que R$ 8.000,00 (oito mil reais) não é um salário irrisório, como foi mencionado aqui.

19. No mesmo sentido votou o Desembargador Federal Souza Prudente, acrescentando que: Senhor Presidente, no que se refere ao mérito da decisão agravada desta douta Presidência, que suspendeu os efeitos da decisão liminar do juízo monocrático, a pedido do douto Ministério Público Federal, mesmo considerando, sob determinado ângulo, que a divergência tenha razões bastante respeitáveis para se insurgir contra a decisão agravada, verifico que, no caso destes autos, o que temos fundamentalmente é uma questão ambiental de respeito à vida.

Entendo que, talvez, seria mesmo uma quimera imaginar que o Estado brasileiro está devidamente aparelhado para atender às questões emergentes de saúde pública e de proteção à vida das pessoas. Não, não está. E muito menos ainda está preparado e aparelhado para a defesa do meio ambiente. O Estado brasileiro funcionalmente é quase falido em matéria de mecanismo de proteção do meio ambiente. Temos excelentes normas legais, mas não temos aparelhamento funcional do Estado para fiscalizar a aplicação e a eficácia plena dessas normas legais.

Portanto, Senhor Presidente, há pessoas que estão entranhadas na Floresta Amazônica, no Pantanal Mato-Grossense ou nas regiões áridas do nordeste brasileiro, sem ter condições de atendimento médico, sem ter sequer direito a um posto médico digno que possa, assim, permitir os cuidados que merecem essas pessoas, temos mais é que admitir que a medicina estrangeira e seus profissionais possam exercer, sim, a medicina no Brasil, sem maiores exigências meramente burocráticas e formais a ponto de atender aqueles que merecem viver e que não podem aguardar do Estado essa proteção sempre tardia. (Destaquei)

20. Como se observa, a questão foi debatida, por parte dos julgadores, como sendo a opção entre ter um médico estrangeiro e não ter.

21. Mas não é esta, verdadeiramente, a controvérsia. Não há "médicos estrangeiros". Há médico

22. O processo de revalidação de diploma de médico tem a finalidade de verificar não só a autenticidade do diploma, mas se o profissional cursou as disciplinas mínimas que o Estado brasileiro considera necessário para o exercício daquela função e, principalmente, conferir se houve a prática médica em carga horária compatível. Só após a comprovação desses elementos curriculares, convalida-se o diploma e, ipso facto, reconhece-se o profissional médico.

23. Ao contrário do que às vezes se afirma, não se cuida de uma tensão entre o conselho profissional e as secretarias de saúde e os supostos "médicos estrangeiros". Aquele procedimento pode até ter reflexos corporativos nos conselhos profissionais, mas o aspecto fundamental diz respeito ao serviço oferecido à população com um mínimo de qualidade e, portanto, a questão envolve o cidadão e o profissional da área de saúde, intervindo o Estado (em procedimento complexo) apenas para garantir que aquele profissional é minimamente qualificado e merece o título de médico.

24. É muito semelhante com a prova da OAB, exigida para o exercício da advocacia: sua exigência objetiva oferecer à sociedade um profissional minimamente qualificado, embora em relação ao médico exista um agravante. É que se alguém contrata um advogado sem formação adequada, incompetente, no máximo perderá seus bens e, no caso limite, a liberdade. Aqui a situação é bem outra: ao ser tratado por um agente público que não tem a formação mínima necessária, expõe-se a própria saúde, com graves riscos à vida. Nesse sentido, aliás, a farta documentação acostada pelo Requerente, relativa a vários procedimentos instaurados para apurar erros "médicos" praticados por profissionais contratados irregularmente pelos Estados e Municípios.

25. O argumento da comprovação de qualificação mínima é confrontado com a objeção de que mesmos os médicos formados nas universidades brasileiras, com residência e especialização, também erram. Ocorre que constatar que médicos com diploma reconhecido, especialização e - consideremos - mestrado ou doutorado também erram, apenas evidencia o acerto daquela exigência, pois se o médico regularmente inscrito e formado erra, quanto mais aquele profissional com formação incipiente e pendente de verificação.

26. Por outra, calha aqui diferenciar três situações. Uma coisa é a contratação, aqui combatida, de pessoas portadoras de diploma oriundo de universidades estrangeiras sem convalidação. Se a convalidação é procedimento complexo pelo qual se afere a qualificação mínima, a rigor não estamos diante de um médico, de alguém que teve prática curricular suficiente, conhecedor da farmacopéia nacional; ao contrário, presume-se a incapacidade profissional, a desqualificação, a condição de não-médico, dado que médico é aquele que tem seu diploma convalidado e, por isto mesmo, é reconhecido como alguém tecnicamente preparado para a atividade médica.

27. Outra situação, bem diversa, diz respeito a médicos cedidos por outros países que aqui comparecem, por força de convênios, para auxiliar governos municipais e estaduais. São médicos (segundo os países de origem) atuantes em outros países, com experiência clínica, que em razão de desastres, tragédias, epidemias etc, colaboram com o Brasil (e também outros países). Dito de outro modo: um médico atuante em outro país é admitido, por razões várias, a clinicar no Brasil, embora não tenha, também, registro e diploma convalidado. Mas é diferente aceitar médico em situações excepcionais e através de convênios, e contratar profissionais recém saídos de universidades estrangeiras, sem experiência clínica, sem formação curricular comprovada, para atender uma população carente e ansiosa por receber um tratamento médico.

28. A terceira situação a merecer distinção diz respeito a médico com experiência em outros países, com atuação reconhecida por entidades sérias e de prestígio, tenha ou não seu diploma convalidado. Trata-se de médico, a despeito de não possuir registro junto ao Conselho Profissional. Aí teríamos sim a mera formalidade, ou seja, o profissional preenche todos os requisitos, é assim reconhecido pela sociedade ou país no qual atua/atuou e falta apenas a formalidade do procedimento.

29. É algo bem distante de alguém que se formou no estrangeiro, sem experiência clínica sob supervisão de profissional sênior, e que premido pelas circunstâncias, dá seus primeiros passos profissionais sozinho, atendendo pessoas carentes, aprendendo com seus erros, fazendo das pessoas objeto, à proporção que as utiliza, experimentando medicamentos e tratamentos. Aí não temos mera formalidade: há substância, exigência de natureza essencial. Quando a formalidade objetiva demonstrar a existência de um requisito essencial, confunde-se com a própria substância do ato. A condição para clinicar no Brasil é ser médico, e para ser assim reconhecido a lei exige a revalidação do diploma, ante a natureza peculiar da atividade médica. O diploma revalidado é prova da condição essencial mínima, ou seja, que o interessado possui os conhecimentos formais mínimos para o exercício da função médica.

30. A Constituição Federal não estipulou cidadãos de segunda categoria. Se não aceitamos entregar a construção de uma ponte ou prédio a engenheiro sem comprovação de sua qualificação técnica, se não aceitamos advogados sem comprovação de sua habilidade, não é correto igualmente aceitar médico sem comprovação mínima de sua qualificação. Não é correto deixar a população carente, logo a população mais vulnerável, aos cuidados de profissional inexperiente, como se não merecessem a mesma consideração e respeito que os demais brasileiros. Isso não só é ilegal como injusto, porque agrava a situação de quem já se encontra em situação vulnerável.

31. Os vários casos documentados pelo Requerente acerca de erros médicos praticados por supostos profissionais e a complementação curricular exigida pelas universidades brasileiras demonstram que aqueles agentes não podem clinicar enquanto não demonstrarem sua formação acadêmica (mínima).

32. Nesta perspectiva, repiso, a escolha não é entre não ter médico e ter médico estrangeiro. Esse dilema é inexistente e falso, porque não há médico estrangeiro, há médico, pouco importa sua nacionalidade ou formação acadêmica. Ademais, aquele pseudo-dilema esconde aspectos perigoso e desrespeitoso. Perigoso porque omite a circunstância de que o Estado está expondo a população mais carente a profissionais sem qualificação comprovada; desrespeitoso porque trata os cidadãos brasileiros com discriminação, impondo um serviço de segunda classe sob o argumento coator de que "aceita-se esse médico ou permaneça-se doente".

Esse argumento desrespeita intrinsecamente as pessoas, negando-lhes a mesma consideração e respeito que o Estado confere a outras. Desrespeita o cidadão impor um profissional, cujas habilidades não se encontram comprovadas minimamente, ao fundamento de que não há alternativa, como que a dizer, "aceitem ou fiquem à míngua". Esse discurso avilta o cidadão, porque lhe impõe, como se não houvesse outra escolha, um atendimento por pessoa sem credencial e sem habilitação mínima reconhecida.

33. O cidadão tem o direito de ser atendido por um MÉDICO, como lhe garante a lei. A Constituição não distingue entre suseranos, aos quais a lei garantiria atendimento por médico, e vassalos, os quais poderiam ser submetidos a atendimento por não médicos, pessoas cuja capacidade e qualificação não observa o mínimo curricular exigido para aqueleoutros. Há, Brasil, apenas cidadãos, e todos devem ser submetidos ao regramento mínimo, sem discriminação.

34. Em uma sociedade bem organizada, formada por pessoas livres e iguais, o Estado deve tratar a todos com igual consideração e respeito. Decorre dessa premissa que o serviço de saúde prestado a uma pessoa que resida em Ipanema (Rio de Janeiro), na região dos Jardins (São Paulo) ou no Lago Sul (Brasília), por exemplo, deve ter a qualidade mínima exigida do serviço prestado ao morador de morro carioca, do pantanal, do semiárido nordestino ou da floresta amazônica. Isso porque, sendo todos iguais, não se justificaria que o Estado tratasse pior o ribeirinho amazônico em relação a alguém que, por pura sorte, tenha nascido numa área nobre de uma metrópole brasileira. Aliás, convém lembrar que o art. 196 da Constituição, transcrito anteriormente, exige acesso "universal e igualitário" aos serviços de saúde. É assim que tem de ser.

35. Ofende a consciência cidadã afirmar que um profissional, rejeitado nas cidades maiores, possa ser aceito nas pequenas comunidades do interior, como se fossem cidadãos de segunda classe. Essa situação só é admitida porque os dirigentes de tais comunidades, ao surgimento dos primeiros sintomas de doença, buscam tratamento fora. É sintomático que os dirigentes de tais municípios distantes, bem como seus familiares, não se submetam ao "tratamento" de tais profissionais. Eles têm medo. Não confiam sua saúde a um profissional cuja competência (mínima) não foi demonstrada.

36. E eles (prefeitos, secretários de saúde) têm razão. O erro está em aplicar para aos outros aquilo que não se aceita para si mesmo. O argumento ad terrorem.

37. Os gestores públicos têm utilizado em larga escala o argumento de que não podem excluir os "médicos" estrangeiros sob pena de instaurar o caos na Saúde Pública; que inexistem médicos dispostos a trabalhar no interior ou em número suficiente. E lançam a mídia e a opinião pública contra quem quer se insurja contra os "estrangeiros".

38. Trata-se de falácia, porque suas premissas são falsas, e apenas visa impedir o bom debate. A questão deve ser debatida com absoluta transparência junto ao público. Não podemos subtrair do debate público aspectos fundamentais da questão.

39. É falso o argumento porque pressupõe uma escolha inexistente: os médicos estrangeiros ou a ausência de médico. E como já explicitado, não há médico estrangeiro. Se houver médico, no sentido que se empresta a esta palavra na administração pública brasileira, sujeita ao princípio da legalidade, então não há controvérsia: mantenham-se tais profissionais. Há sim pessoas que se formaram em universidades estrangeiras cuja qualificação não foi comprovada. Médico, no Brasil, é a pessoa portadora de diploma de curso superior reconhecido por universidade brasileira, bem como regularmente registrado no conselho profissional para que seja fiscalizado e, quando errar, ser punido e cassado em sua habilitação (art. 17 da Lei 3.268/57).

40. É falacioso dizer que se há médicos estrangeiros e que se trata de mera formalidade. A formalidade pode e deve ser desconsiderada quando instrumental, quando meramente acessória, por configurar exigência esdrúxula e secundária. Mas quando a formalidade tem a função de revelar a substância de um ato, um pressuposto indispensável, não deve ser afastada. No caso, exigir a convalidação do diploma é exigir a comprovação de que o interessado é médico e que possui a formação curricular mínima. A formalidade aqui refere-se não só a comprovação da qualificação para o exercício do cargo de médico, mas ao respeito que as pessoas necessitadas merecem.

41. Uma boa forma de demonstrar a essencialidade do registro e convalidação do diploma é constatar que ninguém, voluntariamente, se submeteria a tratamento médico por pessoa cuja qualificação profissional não se encontra comprovada. Geralmente, quem sustenta este argumento (a desnecessidade do registro e da revalidação do diploma) o faz para outros, não para si.

42. Impedir que tais agentes continuem a clinicar nos municípios distantes é impedir que a comunidade de tais municípios continuem a receber um serviço público que ninguém mais aceita, de qualidade duvidosa e sob suspeita.

As pessoas não necessitam de tal serviço, porque perigoso, porque ilegal, porque discriminatório. As pessoas têm direito a um serviço público com o padrão mínimo de qualidade oferecido aos demais brasileiros.

43. A urgência da medida se justifica a fim de evitar que cidadãos brasileiros, crianças, idosos e hipossuficientes continuem a ser submetidos a tratamento por pessoas que não comprovaram qualificação profissional para o exercício da atividade médica. Não há aqui cálculo utilitarista entre um serviço oferecido por "médico estrangeiro" e a ausência de médico: o Estado (lato senso) não pode oferecer um serviço sem observância dos requisitos que garantem a qualificação mínima, expondo pessoas doentes a tratamento por quem não demonstrou, nos termos da legislação brasileira, capacidade para o exercício da medicina. Não há ponderação a ser feita, pois a ponderação pressupõe que os princípios envolvidos admitam flexibilização ou atenuação. Mas não é possível se transigir com a vida e a saúde, e, em decorrência, não há ponderação.

44. Em suma, o ordenamento jurídico exige o afastamento dos médicos sem credenciamento no conselho profissional e sem revalidação de diploma expedido por instituição de ensino estrangeira. Além disso, a harmonização desta decisão com o precedente judicial discutido requer a proibição de contratação irregular de novos médicos, mas com a fixação de prazo máximo para substituição daqueles que atualmente se encontram em situação irregular.

45. Com base nessas razões, defiro parcialmente o pedido liminar, a fim de determinar que os réus a) abstenham-se de contratar, para o cargo de médico, pessoas sem registro no conselho profissional; e b) suspendam, no prazo de 30 (trinta) dias, o exercício das atividades dos médicos, atualmente contratados, que estejam em situação irregular (sem registro junto ao conselho profissional).

46. Emendem os autores a inicial, trazendo aos autos Termo de Ajustamento de Conduta firmado pelo Município de Feijó com o Ministério Público do Estado do Acre ou justifique a impossibilidade de fazê-lo, no prazo de 10 dias.

47. Regularize o Conselho Regional de Medicina do Estado do Acre sua representação processual, trazendo aos autos original ou cópia autenticada da procuração de fl. 28.

48. Retifique-se a autuação, fazendo-se constar no polo passivo os municípios de Porto Acre, Acrelândia, Feijó e Manoel Urbano, em substituição às respectivas prefeituras, haja vista que estas não possuem personalidade jurídica própria.

49. Citem-se. Intimem-se as partes e o Ministério Público Federal (art. 5º, § 1º, da Lei 7.347).

Rio Branco - Acre, 21 de junho de 2010.


Jair Araújo Facundes
Juiz Federal



JURID - ACP. Registro profissional [07/07/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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