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segunda-feira, 12 de julho de 2010

JURID - ACP. Poluição Sonora [12/07/10] - Jurisprudência


Sinos de igreja vão parar de soar para evitar poluição sonora em SC
MBA Direito Comercial - Centro Hermes FGV


Autos n.° 052.08.000807-2
Ação: Ação Civil Pública/Lei Especial
Autor:
Ministério Público do Estado de Santa Catarina
Réu: Comunidade Evangélica Luterana de Porto União e União da Vitória


Vistos, etc.

I - RELATÓRIO


O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, por seus Promotores de Justiça, ajuizou ação civil pública em face de COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA DE PORTO UNIÃO E UNIÃO DA VITÓRIA, qualificada. Em síntese, aduziu que a Igreja Luterana representada pela ré soa seus sinos diariamente, às 7, 12 e 18h, em volume superior a 65dB, limite máximo tolerado em termos de poluição sonora. Ao final, pugnou pela procedência do pedido, inclusive liminarmente, para que a ré limite o volume dos sinos a 55dB durante o período diurno e 50dB durante o período noturno, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00. Valorou a causa em R$ 1.000,00. Acostou os documentos de fls. 11/81.

A liminar foi parcialmente concedida (fls. 85/87).

Citada (fl. 89), a ré apresentou contestação (fls. 90/94). Resumidamente, alegou que a perícia realizada pelo autor não merece ser acolhida e disse que o badalar dos sinos faz parte da cultura da comunidade. Ao final, pugnou pelo improcedência do pedido. Acostou os documentos de fls. 95/486.

A ré interpôs agravo de instrumento em face da liminar de fls. 85/87 (fls. 487/494). Entretanto, a decisão foi mantida por seus próprios fundamentos (fl. 495). O autor impugnou a contestação e os documentos. Em suma, asseverou os mesmos fundamentos jurídicos articulados na petição inicial, reiterando pela procedência do pedido (fls. 497/499).

Foi negado seguimento ao agravo de instrumento (fls. 512/513).

Determinada a realização de perícia (fl. 514), sobreveio o laudo técnico ao processo (fls. 543/559).

Manifestação das partes acerca do laudo (fls. 561 e 562).

Requereram as partes o julgamento antecipado da lide (fls. 586/587 e 589/590).

Vieram os autos conclusos.

É o relatório.

DECIDO


II - FUNDAMENTAÇÃO

A areia que se esvai pelo gargalo da ampulheta marca o tempo em um fluxo ininterrupto. Essa areia, porém, não tem o condão de enterrar o passado. Vez que outra velhas questões ressurgem a evidenciar as contradições da dinâmica social --- alterna-se entre momentos de pujança na busca por uma nova ordem das coisas e de apego à conservação do estado em que essas coisas se encontram. O caso dos autos é exemplo disso. De um lado, o Parquet alega que os sinos da Igreja Luterana --- que soam diariamente às 7, 12 e 18h --- causam poluição sonora, porquanto estão em desacordo com os níveis máximos de ruído tolerados para o homem. De outra banda, a Comunidade Evangélica Luterana de Porto União e União da Vitória sustenta que o soar dos sinos é uma prática levada a efeito há mais de meio século pela igreja que representa, sendo respeitada pelas mais diversas religiões e prezada pelas pessoas com raízes firmadas na região. Daí se vê, pois, que as partes nada mais fazem do que controverter sobre o seguinte problema: tudo se justifica em nome da cultura ou da tradição-

A questão poderia ser, a princípio, de singela solução. Bastaria verificar a zona urbana onde localizada a igreja representada pela ré e aferir o volume dos sinos. Constatada a poluição sonora, tomar-se-iam as providências necessárias para cessá-la. No entanto, a prestação jurisdicional a ser entregue vai muito além da aplicação da letra fria da lei. Implica na ponderação axiológica de direitos constitucionalmente qualificados pelo signo da intangibilidade: o meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da CF) e a liberdade de crença por meio da proteção aos locais de culto e suas liturgias (art. 5º, VI, da CF).

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é elevado ao status de fundamental porque o constituinte originário o classificou como "essencial à sadia qualidade de vida" (art. 225, in fine, da CF). Em outras palavras: quando se o protege está-se a proteger nada mais nada menos do que a força motriz de todo o sistema: a vida, desvelada em suas mais diversas formas (art. 5º, caput, da CF).

A concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado dá-se por meio de um sistema normativo estruturado de forma progressiva com vista à sua preservação não só para a atual geração (cidadãos do país), mas também para as futuras gerações (aqueles que ainda não existem e os que poderão existir). Em primeiro lugar, cria-se o direito constitucional fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Em seguida, qualifica-se o meio ambiente como entidade autônoma, pertencente à generalidade da sociedade. Diz-se também ser esse direito essencial à qualidade de vida. Finalmente, institui-se um dever de proteção desse direito tanto para o Poder Público como para as demais pessoas (cf. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: gestão ambiental em foco. 5. ed. ref. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2007, p. 150/151).

O meio ambiente, a teor do disposto na Lei nº 6.938/81, abrange toda a natureza natural e física. Vale dizer: ele se constitui não só pela fauna ou pela flora etc., mas também pelas acessões executadas pelo homem (art. 3º, I). Nesse contexto, faz-se mister para resguardá-lo a adoção de políticas de combate à degradação ambiental, nela compreendida à poluição (art. 2º, I). A poluição, por sua vez, pode se revelar como resultante de atividades que direta ou indiretamente: (i) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (ii) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; (iii) afetem desfavoravelmente a biota; (iv) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e (v) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos (art. 3º, III). O tipo de poluição que interessa para o presente caso é a que prejudica "a saúde, a segurança e o bem-estar da população".

O Conselho Nacional do Meio Ambiente Â- CONAMA, por meio da Resolução nº 1/1990, estabeleceu que os níveis excessivos de ruído estão incluídos entre os problemas sujeitos ao controle de poluição do meio ambiente. Assim, considerando o agravamento da deterioração da qualidade de vida nos centros urbanos causada pela poluição, resolveu balizar a matéria no interesse da saúde e do sossego público. Para tanto, assentou como aceitáveis os níveis de ruído previstos na Instrução Normativa NBR-10.151 --- Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas visando o conforto da comunidade, da Associação Brasileira de Normas Técnicas Â- ABNT.

A referida Instrução Normativa instituiu os níveis de ruído segundo os períodos do dia em que emitidos e as zonas urbanas afetadas pela respectiva emissão. Os períodos do dia são diurno (das 7 às 20h) e noturno (das 20 às 7h). As zonas urbanas afetadas pela emissão são classificadas em área residencial, área diversificada e área predominantemente industrial. A conjugação desses dados determina que no período diurno os níveis de ruído devem obedecer os seguintes padrões: (i) área residencial Â- 55dB; (ii) área diversificada Â- 65dB; e (iii) área predominantemente industrial Â- 70dB. Já para o período noturno, esses dados estipulam níveis de ruído nos seguintes patamares: (i) área residencial Â- 50dB; (ii) área diversificada Â- 60dB; e (iii) área predominantemente industrial Â- 65dB.

Os documentos de fls. 571/572 demonstram que a Igreja representada pela ré está inserida em área diversificada. Nessa perspectiva, deve respeitar os padrões de ruído de 65dB no período diurno e 60dB no período noturno. Os padrões postulados pelo autor são os da área residencial, quais sejam, 55dB no período diurno e 50dB no período noturno. Porém, a zona em que situado aquele estabelecimento permite os seguintes usos: (i) residencial unifamiliar e multifamiliar; (ii) reunião de público; e (iii) saúde, comércio e serviços, excluídos os industriais. Daí se vê, pois, que o local em questão, embora comporte o uso residencial, franqueia todas os demais usos que não o industrial. Tanto é assim que estão instalados na região o corpo de bombeiros, o INSS, o posto central de saúde e o Fórum da Comarca, ou seja, estabelecimentos outros que em nada dizem com o uso residencial.

A perícia designada, em atenção a esses dados, demonstrou que em frente à Igreja, mais especificamente na Rua Padre Anchieta nº 435 (Ponto 1), o badalar dos sinos atinge 89,6, 83,2, 84,3 e 86,9dB. Logo, em muito foram superados os limites para a área em que localizada, quais sejam, 65dB no período diurno e 60dB no período noturno (fls. 543/559).

O nó górdio da quaestio, tendo em vista a constatação alhures, surge agora: limitar o ruído provocado pelos sinos da Igreja representada pela ré aos patamares encontrados implicaria violação à liberdade de crença- Para que se possa chegar a uma conclusão coerente a respeito do tema faz-se mister discorrer acerca do conteúdo e da extensão desse direito fundamental.

A liberdade de crença está prevista no art. 5º, VI,da CF. Para que se possa assegurá-la integralmente mister desmembrar o texto normativo em três frentes: (i) liberdade religiosa; (ii) liberdade de culto; e (iii) liberdade de organização religiosa. No caso, supõe-se vulnerada a "liberdade de culto". Portanto, é acerca dela que se passa a discorrer.

A liberdade de culto foi consagrada como cláusula pétrea em virtude de que "a religião não é apenas um sentimento sagrado puro. Não se realiza na simples contemplação do ente sagrado. Não é simples adoração a Deus". Pelo contrário. "Sua característica básica se exterioriza na prática de ritos, no culto, com suas cerimônias, manifestações, reuniões, fidelidade aos hábitos, às tradições, na forma indicada pela religião escolhida". Tanto é assim que há previsão expressa no texto constitucional no sentido de que a liberdade de crença compreende "a proteção aos locais de culto e suas liturgias" (art. 5º, VI, in fine, da CF). Até porque seria incoerente por parte do Estado assegurar, de um lado, o direito de crença e obstar, de outro, as formas de professá-la (SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 249/250).

Os principais mecanismos para a garantia dessa liberdade estão na vedação aos Entes Federados de "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público" (art. 19, I, da CF) e de "instituir impostos sobre templos de qualquer culto" (art. 150, VI, "b", da CF). Esses dispositivos consagram o chamado princípio da laicidade do Estado brasileiro --- a meu sentir, consagram a plurireligiosidade do Estado brasileiro, mas a discussão não vem ao caso. Quer-se dizer então que do Estado são exigidas condutas positivas e negativas na consecução dos objetivos colimados pela liberdade de culto.

A hipótese dos autos, há que se registrar, não vai de encontro a nenhuma dessas condutas. Ao que consta, a Igreja representa pela ré está açambarcada por esses dispositivos e está em pleno desenvolvimento das suas atividades. Nesse passo, afigura-se oportuno dizer que a pretensão inicial em nenhum momento sequer permite entrever o propósito de o Estado embaraçar-lhe o funcionamento. Pelo contrário. Reconhece expressamente a importância da instituição ré. O que quer o autor é unicamente harmonizar o direito de a ré realizar seus cultos com o direito à saúde e ao sossego dos vizinhos da Igreja. Isso não significa, em absoluto, uma afronta à liberdade religiosa.

O fato de o soar dos sinos fazer parte da tradição e da cultura da Igreja representada pela ré não lhe dá o direito de usufruir desse bem imaterial de maneira ilimitada. Em resposta ao problema alhures formulado, convém rememorar que muitos absurdos já foram cometidos em nome da cultura e da tradição. Muitos são os exemplos que desmistificam esse pensamento: (i) a "farra do boi", introduzida em nosso Estado pelos colonizadores portugueses, faz parte da tradição e da cultura açoriana, mas não justifica a crueldade cometida contra os animais (STF, RE 153.531-8/SC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 03/06/1997); (ii) a mutilação da genital feminina praticada por seguimentos da cultura islâmica não justifica a tortura à qual as mulheres são submetidas (pt.wikipedia.org/wiki/Mutila%C3%A7%C3%A3o_genital_feminina).

A pretensão inicial, pois, há de ser parcialmente acolhida, de modo que caberá à ré adequar o ruído emitido pelos sinos aos padrões exigidos para a área diversificada, quais sejam: (i) de segunda à sexta-feira, 65dB no período diurno (das 7 às 20h) e 60db no período noturno (das 20 às 7h); (ii) aos sábados, domingos e feriados oficiais, 60dB nos períodos diurno e noturno. Tal providência poderá ser tomada, de acordo com a perícia, mediante redução do ângulo de abertura dos sinos.

A impugnação da perícia feita pela ré não merece acolhida. Os pontos de insurgência são genéricos, não especificando nenhuma inobservância dos padrões técnicos vigentes. De mais a mais, a análise do laudo do expert evidencia que ele o elaborou de acordo com o disposto na Instrução Normativa NBR-10.151.

O mesmo há de ser dito quanto à conclusão do perito no sentido de que dentro das residências próximas à Igreja, quando de janela fechada, o ruído emitido pelos sinos está adequado aos níveis máximos permitidos pela Instrução Normativa NBR-10.151. Para efeitos de aferição da poluição sonora importa o nível obtido no denominado Ponto 1 da perícia, que diz com a rua à qual faz frente o templo religioso em questão.

A fim de garantir a efetividade da decisão, em conclusão, entendo necessária a fixação de astreinte. Assim, caberá à ré se abster de soar os sinos enquanto não promover a adequação do ruído emitidos aos patamares alhures mencionados. Para tanto, caberá a ela trazer aos autos, com o trânsito em julgado da sentença, laudo técnico de aferição do ruído realizado nos moldes da prova técnica de fls. 543/559 e mediante prévia ciência do Ministério Público para acompanhar sua confecção, sob pena de multa de R$ 5.000,00 mais R$ 1.000,00 por dia de inadimplemento.


III - DISPOSITIVO

Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido inicial, com resolução do mérito (art. 269, I, do CPC), e CONDENO a ré COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA DE PORTO UNIÃO E UNIÃO DA VITÓRIA a proceder à adequação do ruído dos sinos da Igreja Luterana de Porto União aos seguintes patamares: (i) de segunda à sexta-feira, 65dB no período diurno (das 7 às 20h) e 60db no período noturno (das 20 às 7h); (ii) aos sábados, domingos e feriados oficiais, 60dB nos períodos diurno e noturno.

Caberá à ré se abster de soar os sinos enquanto não promover a adequação do ruído emitidos aos patamares alhures mencionados. Para tanto, deverá trazer aos autos, dentro de 30 dias do trânsito em julgado da sentença, laudo técnico de aferição do ruído realizado nos moldes da prova técnica de fls. 543/559, sob pena de multa de R$ 5.000,00 mais R$ 1.000,00 por dia de inadimplemento.

A título de antecipação da tutela, enquanto não houver o trânsito em julgado da decisão, mantenho as determinações dos itens 1 e 2 do termo de audiência de fl. 527, ficando autorizado o badalar dos sinos diariamente entre as 12h e 22h e, aos domingos, das 09h e 10h para marcar o início e o fim do culto.

Em razão da sucumbência, arcará a ré com custas e despesas processuais. Não há que se falar em honorário advocatícios.

Transitado em julgado, expeça-se mandado de intimação do réu para adequação dos ruídos na forma especificada na decisão, dentro de 30 dias, sob pena de incidência da multa.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Porto União (SC), 07 de maio de 2010


Marcelo Volpato de Souza
Juiz de Direito




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