Anúncios


sexta-feira, 21 de maio de 2010

JURID - Processual penal. Recurso em sentido estrito [21/05/10] - Jurisprudência


Processual penal. Recurso em sentido estrito com recurso ex officio. Tentativa de homicídio qualificado. Absolvição.

Tribunal de Justiça do Mato Grosso - TJMT

Recurso de Apelação nº 55542/2006

Publicado em 19.05.2010

PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

PETIÇÃO Nº 55542/2006 - CLASSE CNJ - 1727 - COMARCA DE JUÍNA

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO

RECORRIDO: RAIMUNDO CAMPOS CARDOSO, VULGO "GOIANO"

Número do Protocolo: 55542/2006

Data de Julgamento: 04-05-2010

EMENTA

PROCESSUAL PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO COM RECURSO EX OFFICIO - TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - IMPOSSIBILIDADE - AUSENTE SUPORTE FÁTICO EM TAL SENTIDO - MERO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE - DÚVIDAS RESOLVEM-SE EM FAVOR DA SOCIEDADE - REFORMA PROCESSUAL QUE SUPRIMIU DO ROL TAXATIVO DOS RECURSOS DE OFÍCIO A HIPÓTESE DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL - RECURSO PROVIDO E REEXAME NECESSÁRIO NÃO CONHECIDO.

A absolvição sumária só é admitida quando inquestionável o suporte fático a confirmá-la.

Provada a materialidade e presentes indícios de autoria, as dúvidas resolvem-se em favor da sociedade, impondo-se a pronúncia como mero juízo de admissibilidade.

Diante das alterações trazidas pela Lei n. 11.689/08, suprimiu-se o recurso de ofício na hipótese de absolvição sumária no rito do júri.

RELATÓRIO

EXMO. SR. DR. RONDON BASSIL DOWER FILHO

Egrégia Câmara:

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito com Recurso Ex Officio interposto pelo representante do Ministério Público, objetivando a reforma da sentença que absolveu sumariamente o acusado RAIMUNDO CAMPOS CARDOSO, da imputação do crime tipificado no artigo 121, § 2°, incisos II e III, c/c artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal.

De acordo com a inicial acusatória, no dia 11 de junho de 2003, por volta das 23hs30min, no interior do Hotel Marcos, situado na Rua Gabriel Muller, s/n, Vila Operária, na cidade e comarca de Juína, o recorrido, fazendo uso de arma branca tipo faca, desferiu golpes contra Júnior de Oliveira Costa, causando-lhe as lesões corporais descritas no Auto de Exame de Corpo de Delito de fls. 16/17, só não consumando o crime por circunstâncias alheias à sua vontade.

O Juízo a quo impronunciou o ora recorrido, absolvendo-o sumariamente, ante o reconhecimento da existência da excludente de ilicitude da legítima defesa própria, de acordo com o que dispõe o artigo 411 do Código de Processo Penal (redação anterior à Lei n. 11.689/08).

Irresignado com essa decisão, o recorrente interpôs o presente Recurso em Sentido Estrito, sob o fundamento de que não restou comprovada, de forma extreme de dúvida, a excludente de ilicitude prevista no artigo 23, inciso II, e preconizada no artigo 25, ambos do Código Penal. Por este motivo, requer a reforma da sentença recorrida e, consequentemente, a pronúncia do Recorrido, para que a apreciação do delito seja submetida ao Tribunal Popular do Júri.

Em contrarrazões, o recorrido rebateu todos os argumentos trazidos pelo Órgão Ministerial, pugnando pela confirmação in totum da decisão impugnada.

A sentença hostilizada foi mantida em Juízo de Retratação.

Instada a se manifestar, a ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em Parecer da lavra do douto Procurador de Justiça Dr. João Batista de Almeida, opinou pelo provimento do presente recurso.

É o relatório.

PARECER (ORAL)

O SR. DR. JOSÉ DE MEDEIROS

Ratifico o parecer escrito.

VOTO

EXMO. SR. DR. RONDON BASSIL DOWER FILHO (RELATOR)

Egrégia Câmara:

Do Recurso em Sentido Estrito

Como relatado, cuida-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo representante do Ministério Público, objetivando a reforma da sentença que absolveu sumariamente o denunciado Raimundo Campos Cardoso.

Ab initio, cumpre salientar que a Lei n. 11.689/08, que alterou os dispositivos do Código de Processo Penal relativos ao Tribunal do Júri e entrou em vigor na data de 09 de agosto de 2008, estabeleceu, no artigo 416 que: "contra a sentença de impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação."

Dessa forma, como o presente Recurso em Sentido Estrito foi interposto sob a égide das regras anteriores (fls. 146 a 154), deve ser recebido como Recurso de Apelação Criminal.

O recorrente sustenta que não restou comprovada, de forma extreme de dúvida, que o recorrido teria agido sob o manto da legítima defesa (artigo 23, inciso II, do Código de Processo Penal), motivo pelo qual requer a reforma da decisão, e a consequente pronúncia do mesmo.

Em síntese, narra a inicial acusatória que no dia 11 de junho de 2003, por volta das 23h30min, no interior do Hotel Marcos, situado na Rua Gabriel Muller, s/n, Vila Operária, na cidade e comarca de Juína, o recorrido, fazendo uso de arma branca tipo faca, desferiu golpes contra Júnior de Oliveira Costa, causando-lhe as lesões corporais descritas no Auto de Exame de Corpo de Delito de fls. 16/17, só não consumando o crime por circunstâncias alheias à sua vontade.

A materialidade restou comprovada através do Auto de Exame de Corpo de Delito (fls. 16), Mapa Topográfico para Localização de Lesões (fls. 17) e do Auto de Exibição e Apreensão de n. 0063/2003 (fls. 14).

Quanto à autoria, ressalte-se que o recorrido, na fase policial, fez uso do seu direito constitucional de permanecer calado. Em Juízo, confirmou a autoria dos golpes desferidos contra a vítima, embora afirme ter agido em legítima defesa própria. Senão vejamos:

"(...) Que falei para a vítima que nós já tínhamos um serviço para trabalharmos juntos, sendo que a vítima respondeu que eu não mandava nele, momento em que começou a discussão, sendo que a vítima foi para cima dele, momento em que começou a discussão, sendo que a vítima foi para cima empurrando-me contra a cama e ao cair bati com a cabeça na parede, momento em que peguei uma faquinha que estava ao lado, no chão. Que de posse do canivete a vítima segurou a minha mão e começamos a lutar, sendo que na briga a vítima tentando tomar a faca da minha mão e eu tentando acertá-lo com a faca, quando atingi a vítima com dois golpes de faca. (...)" (Raimundo Campos Cardoso, em Juízo, fls. 35 e 36) (grifei)

Conforme se verifica, o recorrido afirma ter agido sob a excludente da legítima defesa, enquanto que a vítima apresentou versão oposta para os fatos ocorridos. Senão vejamos:

"(...) QUE havia deixado suas roupas no quarto em que GOIANO estava hospedado, QUE devido ter arranjado outro serviço, pediu para GOIANO ir com ele buscar suas roupas, QUE já era tarde da noite, QUE dirigiram-se ao referido quarto, QUE no instante em que abaixou-se no intuito de apanhar suas roupas, GOIANO disse-lhe para não pegá-las, afirmando QUE ele tinha mesmo que trabalhar com ele (GOIANO), momento em que foi surpreendido com GOIANO vindo em sua direção com uma faca, a fim de atingi-lo, instante em QUE tentou defender-se com o braço, almejando retirar a faca das mão (sic) de GOIANO, momento em que sofreu um corte no pescoço, quase sendo degolado, em suas mãos (direita e esquerda), como também um corte na testa, QUE se não tivesse certa agilidade, com certeza estaria morto, que GOIANO percebeu que não alcançou seu intuito, retirou-se do quarto, mas foi de pronto apanhado pela Polícia. (...)" (Júnior de Oliveira Costa, na Polícia, fls. 06 e 07) (grifei)

Saliente-se que a vítima prestou depoimento apenas na fase policial, tendo em vista que veio a falecer poucos meses depois do fato (Certidão de Óbito de fls. 101).

Já a testemunha Roberto Carlos de Souza Cruz, policial militar que atendeu a ocorrência no Hotel Marcos e que levou a vítima para o hospital, prestou declarações contraditórias na fase policial e em Juízo:

"(...) momento em que deslocou-se juntamente com a Guarnição da Polícia Militar ao referido local, QUE quando lá chegaram, depararam com o conduzido em posse de uma arma branca, modalidade faca, instante em QUE notou a presença da Guarnição, jogando-a (faca) no chão, oportunidade em que o detemos, momento em QUE socorremos a vítima ao Hospital Municipal local, sendo QUE, no trajeto, fomos informados pela vítima, QUE o conduzido apoderouse de uma faca, vindo em sua direção, atingindo-a, ocasionando lesões em seu pescoço, na região da cabeça, em suas mãos esquerda e direita (...)" (Roberto Carlos de Souza Cruz, em sede policial, fls. 05 e 06) (grifei)

"(...) Que segundo declarações do acusado este ocasionou lesões na vítima com o intuito de se defender, que a vítima também narrou-lhe que na ocasião estava discutindo com o acusado quando então partiu para cima dele sendo que diante desse fato o acusado se defendeu ocasionando a lesão na vítima, não se recorda que se a vítima lhe disse que o acusado proferiu lesões em sua pessoa com o intuito de matá-lo.(...)" (Roberto Carlos de Souza Cruz, em Juízo, fls. 97) (grifei)

Pode-se observar que a testemunha apresentou duas versões para o mesmo fato, ora declarando que a vítima afirmou ter iniciado a agressão e ora que a vítima teria afirmado que apenas se defendeu.

Dessa forma, através da análise minuciosa dos autos, se constata que as versões apresentadas pelo ora recorrido e pela vítima são opostas, assim com as declarações prestadas pela testemunha Roberto Carlos de Souza Cruz são controversas, motivo pelo qual pairam dúvidas a respeito da caracterização da legítima defesa.

Mister salientar que o delito foi cometido no interior do quarto de um hotel, sem testemunhas presenciais, impossibilitando a caracterização, de forma inequívoca, da excludente de ilicitude pleiteada.

Nesse sentido, não há prova concludente e irrefutável de que o recorrido tenha agido sob o manto da legítima defesa própria, o que inviabiliza a absolvição sumária do mesmo.

Elucidou, acerca da matéria, Guilherme de Souza Nucci:

"(...) É preciso ressaltar que somente comporta absolvição sumária a situação envolvida por qualquer das situações supra-referidas quando nitidamente demonstradas pela prova colhida. Havendo dúvida razoável, torna-se mais indicada a pronúncia, pois o júri é o juízo para deliberar sobre o tema." (in Manual de Processo e Execução Penal, editora RT, 2009, p. 760).

No mesmo sentido, colhe-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

"CRIMINAL. RESP. JÚRI. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO. PRONÚNCIA EM GRAU DE RECURSO. OCORRÊNCIA DE LEGÍTIMA DEFESA. QUESTÃO CONTROVERSA. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 07/STJ. RECURSO NÃO CONHECIDO.

Hipótese na qual decisão de primeiro grau, que absolvia o réu sumariamente, foi cassada pelo Tribunal a quo, com a pronúncia do recorrente.

Razões de recurso especial que, com o fito de restabelecer a sentença de absolvição sumária, cuidam de questões acerca da configuração de legítima defesa.

Estando controversa a questão acerca da configuração da legítima defesa, somente o Tribunal do Júri poderá decidir acerca do tema, por ser, de acordo com o mandamento constitucional, o Juiz Natural para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Evidenciado manifesto interesse de reapreciação de aspectos fáticoprobatórios, não se conhece de recurso, ante à incidência do entendimento da Súmula 07/STJ.

Recurso parcialmente conhecido e desprovido." (REsp 887492/SE, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 19/04/2007, DJ 04/06/2007 p. 423) (grifei)

Não diverge o posicionamento deste Egrégio Tribunal de Justiça:

"RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - PRONÚNCIA - ARTIGO 121, § 2º, INCISO II E IV, C/C ART. 14, II NA FORMA DO ARTIGO 29, AMBOS DO CÓDIGO PENAL - PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - NEGATIVA DE AUTORIA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO - MATERIALIDADE COMPROVADA E INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA - NÃO VISUALIZADA, DE PLANO, QUALQUER EXCLUDENTE DE ILICITUDE OU DE CULPABILIDADE - IN DUBIO PRO SOCIETATE - ANÁLISE ACURADA DOS FATOS ATRIBUÍDA AO JÚRI - DECISÃO MANTIDA - RECURSO IMPROVIDO.

A absolvição sumária só tem pertinência quando os autos demonstram, no momento da decisão de pronúncia, a existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena. Caso contrário, constatada a materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria, impõe-se a submissão do agente a julgamento pelo e. Conselho de Sentença, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida."

(TJMT - Recurso em Sentido Estrito n. 25139/2009 - Classe CNJ - 129 - Comarca de Juína - Rel. Des. Juvenal Pereira da Silva - 1ª C. Criminal - J. 18-8-09)

Dessa forma, uma vez comprovada a materialidade do fato e presentes indícios suficientes da autoria, preenchidos estão os requisitos elencados no artigo 413 do Código de Processo Penal, para que se proceda a pronúncia do recorrido.

Diante disso, dou provimento ao presente recurso, para que o recorrido seja submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri.

Do Recurso Ex Officio:

Trata-se de Recurso Obrigatório manejado pelo Juízo da Comarca de Juína, tendo em vista a absolvição sumária de RAIMUNDO CAMPOS CARDOSO, pelo reconhecimento da excludente de ilicitude prevista no artigo 23, inciso II, do Código de Processo Penal, com fulcro no artigo 411 do Código de Processo Penal.

Mencionado dispositivo, ao tempo da prolação da sentença, previa o Recurso Ex Officio, nos casos de reconhecimento da "existência de circunstância que exclua o crime ou isente de pena o réu". Dessa forma, a eficácia da decisão ficava condicionada ao reexame necessário.

Ocorre que a Lei n. 11.689/08, que alterou os dispositivos do Código de Processo Penal relativos ao Tribunal do Júri e entrou em vigor em 09 de agosto de 2008, não mais prevê a necessidade de reexame necessário para o caso em análise, apenas estabelece no artigo 416 que: "contra a sentença de impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação".

Dessa forma, pode-se afirmar que as modificações trazidas pela mencionada lei suprimiram do ordenamento jurídico pátrio o recurso de ofício na hipótese de absolvição sumária, passando a ser impugnada por meio de apelação.

Elucidou, acerca da matéria, Guilherme de Souza Nucci:

"Recurso de ofício: (...) somos levados a admitir ter sido ele afastado do contexto da absolvição sumária no Tribunal Popular. Há duas fortes razões para tanto: a) o art. 411 do CPP, que o previa expressamente, teve sua redação alterada, transformando-se no atual 415, que nada mencionou a respeito; por outro lado, o art. 574, II, do CPP, que, como já mencionado, deixou de prever tal recurso; b) a utilização do recurso de ofício, conforme preceituado pelo art. 574, II, do CPP, abrangeria apenas as causas de exclusão de crime ou isenção de pena, mas não as novas alternativas criadas pela Lei 11.689/2008 (art. 415, I a III, CPP), o que significaria um desequilíbrio inaceitável no âmbito do recurso.

Denota-se, pois, a nítida intenção do legislador afastar do contexto processual penal, ao menos na parte referente à absolvição sumária, o denominado recurso de ofício." (NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 763)

Em sintonia com o acima destacado, trago à colação arestos proferidos por esta Colenda Câmara Criminal:

"REEXAME NECESSÁRIO - JÚRI - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - LEI Nº 11.698/08 - REVOGAÇÃO DO ARTIGO 411 DO CPP - NOVA REDAÇÃO DO ART. 416 DO CPP - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL - NÃO CONHECIMENTO.

Diante da nova redação dos artigos 411, 415 e 416 do CPP, as remessas necessárias manejadas contra decisão que impõe a absolvição sumária, não são típicas e por isso não conhecidas." (TJMT, Reexame Necessário n. 20867/2009, Primeira Câmara Criminal, Relator Des. Rui Ramos Ribeiro, Julgamento 9-6-09)

"RECURSO 'EX OFFICIO' - HOMICÍDIO SIMPLES, TENTADO - ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - LEGÍTIMA DEFESA RECONHECIDA - ENTRAVE ENTRE IRMÃOS - INOVAÇÃO LEGAL - LEI 11.689/08 - FALTA DE PREVISÃO DA REMESSA NECESSÁRIA, PARA A HIPÓTESE DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA NO RITO DO JÚRI - PRINCÍPIO DA IMEDIATA APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL PENAL NO TEMPO - RECURSO NÃO CONHECIDO.

Aplica-se imediatamente as regras instituídas pela reforma processual penal definida na Lei nº 11.689/08, em vigor desde 09-8-2008, inclusive para o fim de obstar - pela superveniente falta de previsão legal - o conhecimento da remessa necessária, quando decretada a absolvição sumária em processos do rito do júri, ainda que a sentença tenha sido publicada antes da vigência da novel legislação."

(TJMT, Reexame Necessário nº 95339/2008, Primeira Câmara Criminal, Relatora: Sr.ª Dr.ª Graciema R. de Caravellas, Julgamento: 27-1-09)

Mister salientar que estamos tratando de normas eminentemente processuais, nos moldes do artigo 2° do Código de Processo Penal, motivo pelo qual sua aplicação deve ser imediata em relação aos processos em curso, sem prejuízo dos atos já praticados.

Nesse sentido, nos ensina Julio Fabbrini Mirabete:

"O art. 2° do CP refere-se à aplicação do princípio 'tempus regit actum', do qual derivam dois efeitos: a) os atos processuais realizados sob a égide da lei anterior se consideram válidos; b) as normas processuais têm aplicação imediata, regulando o desenrolar restante do processo. Fica assim estabelecido o chamado princípio do efeito imediato ou princípio da aplicação imediata da lei processual penal, que se aplica também à matéria de competência, seja ela regulada por leis do processo, seja por normas de organização judiciária. Mesmo que a lei nova venha criar ou suprimir uma ordem de jurisdição, substituir juízes, modificar composição de tribunais etc., deve ela ser aplicada aos processos em curso." (In Código de Processo Penal Interpretado, 11ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 80)

Dessa forma, ainda que a sentença que absolveu sumariamente Raimundo Campos Cardos tenha sido prolatada sob a regência processual anterior, a remessa necessária antes exigida deixou de ter previsão legal, motivo pelo qual não há como conhecer o presente recurso.

Diante do exposto, dou provimento ao recurso de apelação criminal, para que o recorrido seja submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, e não conheço do presente recurso ex officio.

É como voto.

VOTO

EXMO. SR. DES. RUI RAMOS RIBEIRO (REVISOR)

Egrégia Câmara:

Primeiramente, é importante mencionar que embora tenha sido interposto o vertente recurso como sendo em sentido estrito, conforme era previsto na legislação anterior à Lei 11.689/2008, a qual extinguiu a possibilidade do recurso ex officio e do recurso em sentido estrito em casos tais, inserindo-se no artigo 416 do Código de Processo Penal o recurso de apelação como o cabível à espécie, deverá ele ser recebido e conhecido como apelação criminal conforme disposição do mencionado artigo.

O recurso é tempestivo e preenche os demais requisitos de admissibilidade.

Do mérito.

É cediço que a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, de acordo com o artigo 74, § 1º, do Código de Processo Penal. Dessa forma, apenas em casos excepcionais a competência será afastada.

A sentença de pronúncia consiste em mero juízo de admissibilidade da acusação e não em certeza da autoria, devendo ser observados tão-somente a materialidade e os indícios suficientes da participação do acusado na conduta criminosa noticiada na denúncia.

Dissertando sobre o tema, assevera Eugênio Pacelli de Oliveira:

"Pronuncia-se alguém quando ao exame do material probatório levado aos autos se pode verificar a demonstração da provável existência de um crime doloso contra a vida, bem como da respectiva e suposta autoria. Na decisão de pronúncia, o que o juiz afirma, com efeito, é a existência de provas no sentido da materialidade e da autoria. Em relação à primeira, materialidade, a prova há de ser segura quanto ao fato. Já em relação à autoria, bastará a presença de elementos indicativos, devendo o juiz, o tanto quanto possível, abster-se de revelar um convencimento absoluto quanto a ela. É preciso ter em conta que a decisão de pronúncia somente deve revelar um juízo de probabilidade e não o de certeza."

(Curso de Processo Penal, 5ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 548/549)

No presente caso, a materialidade é incontestável e verificada através do auto de exame de corpo de delito de fls. 16 e mapa topográfico para localização de lesões de fls. 17.

Também se infere dos autos indícios suficientes da autoria, sendo certo que o acusado, que no auto de prisão em flagrante recusou-se a depor, em juízo apresentou sua versão caracterizadora de legítima defesa, afirmando:

"Que eu e a vítima trabalhávamos juntos em serviços gerais na região, sendo que na época dos fatos eu estava hospedado no Hotel Marcos. Que as coisas de cozinha e a bolsa de roupas pertencente à vítima encontravam-se comigo no quarto do hotel, pois a vítima não quis se hospedar e preferiu ficar na rua. Que no dia dos fatos a vítima foi ao hotel dizendo que queria dividir comigo as tralhas de cozinha, dizendo que havia arrumado serviço em outro local, contudo nós já tínhamos um serviço onde iríamos trabalhar juntos. Que não tenho conhecimento do motivo que levou a vitima a desistir do serviço que iríamos prestar juntos e resolver arrumar outro serviço para trabalhar sozinho, sendo que a vítima estava embriagada. Que falei para a vítima que nós já tínhamos um serviço para trabalharmos juntos, sendo que a vítima respondeu que eu não mandava nele, momento em que começou a discussão, sendo que a vítima foi para cima empurrando-me contra a cama e ao cair bati com a cabeça na parede, momento em que peguei uma faquinha que estava ao lado, no chão. Que de posse no canivete a vítima segurou a minha mão e começamos a lutar, sendo que na briga a vítima tentando tomar a faca da minha mão e eu tentando acertá-lo com a faca, quando atingi a vítima com dois golpes de faca. Que quando a polícia chegou ainda estávamos atracados, momento em que fui preso. Que eu e a vítima tínhamos um bom relacionamento. Que o que originou a briga foi a vítima ter chegado no hotel dizendo que tinha arrumado outro serviço e que éramos para dividirmos as coisas de cozinha, passando a me agredir. Que já fiquei preso por dois dias em Brasnorte/MT por estar altamente embriagado, sendo que não respondi a qualquer outro processo. (...)" (fls. 35 e 36)

A testemunha Roberto Carlos de Souza Cruz, policial militar que atendeu a ocorrência, quando ouvido em juízo apresentou versão totalmente oposta àquela feita no auto de prisão em flagrante, portanto, no frescor dos acontecimentos, confira-se:

"QUE, por volta das 23:30 horas de 11/06/2003, recebeu uma ligação telefônica, via 190, do solicitante Izaque dos Santos Souza, relatando que estava acontecendo uma briga no interior do Hotel denominado Marcos, situado na Rua Gabriel Müller, s/n, Bairro Vila Operária, nesta cidade, momento em QUE deslocou-se juntamente com a Guarnição da Polícia Militar ao referido local, QUE quando lá chegaram, depararam com o conduzido em posse de uma arma branca, modalidade faca, instante em QUE notou a presença da Guarnição, jogando-a (faca) no chão, oportunidade em que o detemos, momento em QUE socorremos a vítima ao Hospital Municipal local, sendo QUE, no trajeto, fomos informados pela vítima, QUE o conduzido apoderou-se de uma faca, vindo em sua direção, atingindo-a, ocasionando lesões em seu pescoço, na região da cabeça, em suas mãos esquerda e direita, (...)" (fls. 05 e 06 - declaração extrajudicial)

"Que não presenciou o crime em questão, que no dia dos fatos narrados na denuncia passava com a viatura policial em frente ao Hotel Marcos, quando então foi abordado pelo acusado, ao qual estava todo ensanguentado e ferido, na ocasião o acusado narrou o ocorrido, bem como funcionário do Hotel, diante disso o depoente conduziu o acusado e a vítima até o hospital para tratamento e logo em seguida efetuou a prísão do acusado, que tanto o acusado quanto a vítima possuíam lesões contudo desta última era um pouco mais grave, consigna que o acusado e a vítima receberam alta médica no mesmo dia. Que segundo declarações do acusado este ocasionou lesões na vítima com o intuito de se defender, que a vítima também narrou-lhe que na ocasião estava discutindo com o acusado quando então partiu para cima dele sendo que diante deste fato o acusado se defendeu ocasionando a lesão na vítima, não se recorda se a vitima lhe disse que o acusado proferiu lesões em sua pessoa com o intuito de matá-lo. Que a faca utilizada no crime foi apreendida a qual se encontrava toda ensangüentada, porém, não sabe dizer quem era o proprietário da mesma. Que tanto o acusado como a vítima estavam embriagados, que quando chegou no local do crime não havia mais brigas e discussão entre o acusado e a vítima (...)'. (fls. 97 - declaração judicial).

A vítima Júnior de Oliveira Costa, que não foi ouvida em juízo, haja vista ter sido assassinado pouco depois da ocorrência deste fato em análise, declarou no auto de prisão em flagrante, verbis:

"(...) QUE trabalha na região em derrubada de mata, QUE sempre hospeda-se no Hotel do Brizola ou Hotel Juinense, QUE quanto ao fato ocorrido, relata QUE teve um desentendimento com seu conhecido Raimundo Campos Cardoso, vulgo "GOIANO", QUE ambos estavam ingerindo bebida alcoólica em um bar situado nas proximidades do Hotel Marcos, QUE GOIANO estava hospedado no quarto de n° 02 do citado Hotel, QUE havia deixado suas roupas no quarto em QUE GOIANO estava hospedado, QUE devido ter arranjado outro serviço, pediu para GOIANO ir com ele buscar suas roupas, QUE já era tarde da noite, QUE dirigiram-se ao referido quarto, QUE no instante em que abaixou-se no intuito de apanhar suas roupas, GOIANO disse-lhe para não pegá-las, afirmando QUE ele tinha mesmo que trabalhar com ele (GOIANO), momento em QUE foi surpreendido com GOIANO vindo em sua direção com uma faca, a fim de atingi-lo, instante em QUE tentou defender-se com o braço, almejando retirar a faca da mão de GOIANO, momento em QUE sofreu um corte no pescoço, quase sendo degolado, em suas mãos (direita e esquerda), como também um corte na testa, QUE se não tivesse certa agilidade, com certeza estaria morto, QUE GOIANO quando percebeu que não alcançou seu intuito, retirou-se do quarto, mas foi de pronto apanhado pela Polícia, oportunidade em QUE foi socorrido pelos Policiais ao Hospital Municipal, QUE perdeu quase três litros de sangue, QUE tem certeza que o GOIANO tinha toda intenção de matá-lo, QUE somente não obteve êxito, devido ser rápido para defender-se (...)." (fls. 06 e 07)

In casu, as provas colhidas não me permitem concluir que o recorrido realmente reagira a uma situação atual e eminente de perigo à sua vida que tornasse necessária a ação perpetrada.

Para que seja possível a absolvição sumária do acusado mediante o acolhimento, ainda nessa fase, de uma excludente de ilicitude, como é o caso da legítima defesa, a prova deve ser segura e incontroversa, tornando-a plenamente demonstrada, livre de qualquer dúvida.

A absolvição sumária está prevista no art. 411, do Código de Processo Penal, a saber:

"O juiz absolverá desde logo o réu, quando se convencer da existência de circunstância que exclua o crime ou isente de pena o réu (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1o, do Código Penal), recorrendo, de ofício, da sua decisão. Este recurso terá efeito suspensivo e será sempre para o Tribunal de Apelação."

Portanto, a absolvição sumária somente tem lugar quando haja circunstância que exclua o crime ou isente de pena o réu, vale dizer, em casos de excludentes de ilicitude (ex: legítima defesa) e de excludentes de culpabilidade (ex: inimputabilidade).

A despeito de a redação do supracitado artigo fazer referência aos arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do Código Penal, vale lembrar que, após a reforma da Parte Geral do Código Penal, a matéria relativa aos artigos citados passou a ver-se regulada nos artigos. 20 a 23, 26, caput e 28, § 1º.

Assim, somente nessas hipóteses é que cabe a absolvição sumária.

Desta feita, a tese de legítima defesa torna-se controversa, diante dos elementos constantes dos autos, pois há sérias dúvidas quanto à iminência ou atualidade e mesmo da injustiça da agressão - requisitos essenciais da mencionada excludente de ilicitude, devendo a dúvida quanto à sua ocorrência ser dirimida pelo juiz natural do caso, o Conselho de Sentença.

Nesse sentido:

"Pronúncia. HOMICÍDIO qualificado. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. LEGÍTIMA DEFESA. Prova imprecisa. Decote de qualificadora. Impossibilidade. Dúvida. Matéria afeta ao Tribunal do Júri. "In dubio pro societate". Decisão mantida. - A ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA, nos processos de competência do Tribunal do Júri, admite-se somente quando o denunciado faça prova precisa, completa e indiscutível da excludente alegada, pois no caso de dúvida, a questão deve ser dirimida pelo juiz natural, em respeito ao princípio "in dubio pro societate"." (TJMG, 2ª Câmara Criminal, RSE nº 1.0549.05.000589-7/001, Rel. Des. Reynaldo Ximenes Carneiro, j. 13/07/2006, p. 25/08/2006)

"RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. AUSÊNCIA DE PROVA CABAL ACERCA DA LEGÍTIMA DEFESA. PRONÚNCIA QUE SE IMPUNHA. PERTINÊNCIA DA QUALIFICADORA DO RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. Recurso improvido." (Recurso em Sentido Estrito Nº 70027452176, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 28/01/2009)

"CÓDIGO PENAL. CRIMES CONTRA A VIDA. Art. 121, § 2º, inc. IV, c/c art. 14, inc. II, e art. 344, todos do CP. EXISTÊNCIA DOS FATOS. Há elementos que indicam a existência dos fatos, como o auto de exame de corpo de delito, bem como as demais provas colhidas ao longo do feito. IMPRONÚNCIA.

Para afastar o feito do julgamento do Tribunal do Júri, a versão dos acusados deveria restar provada acima de qualquer dúvida, o que não ocorreu no caso em tela. LEGÍTIMA DEFESA. Os depoimentos excluem a absolvição sumária dos denunciados, já que não preenchidos os requisitos do artigo 415 do CPP. Ademais, a legítima defesa alegada sequer encontrou suporte uníssono e coerente ao longo do processo. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. A desclassificação é medida excepcional, e só é admitida quando há certeza absoluta da inexistência do animus necandi. QUALIFICADORAS. Presença de elementos suficientes, para exame pelo Conselho de Sentença. Sabe-se que as qualificadoras somente podem ser excluídas quando manifestamente improcedentes e no caso em comento esta afirmativa não pode ser feita com convicção. CRIME CONEXO. Delito previsto no art. 344 do CP é conexo com as tentativas de homicídio, assim, deve ser apreciado pelo Tribunal do Júri. PRELIMINARES AFASTADAS E, NO MÉRITO, RECURSO DEFENSIVO IMPROVIDO. UNÂNIME." (Recurso em Sentido Estrito Nº 70031464902, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ivan Leomar Bruxel, Julgado em 28/01/2010)

Por todo o exposto e demonstrado, provejo o recurso ministerial, para que a r. decisão de primeiro grau seja reformada, pronunciado-se o acusado Raimundo Campos Cardoso, epíteto "Goiano" para que seja submetido a julgamento pelo E. Tribunal Popular do Júri.

É como voto.

VOTO

EXMO. SR. DES. JUVENAL PEREIRA DA SILVA (VOGAL)

Egrégia Câmara:

Acompanho o voto do Douto Relator, com os acréscimos jurídicos esposados pelo Eminente Revisor.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência do DES. RUI RAMOS RIBEIRO, por meio da Câmara Julgadora, composta pelo DR. RONDON BASSIL DOWER FILHO (Relator), DES. RUI RAMOS RIBEIRO (Revisor) e DES. JUVENAL PEREIRA DA SILVA (Vogal) proferiu a seguinte decisão: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO PROVIDO NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. REEXAME NECESSÁRIO NÃO CONHECIDO. UNÂNIME. O PARECER É PELO PROVIMENTO DO RECURSO VOLUNTÁRIO.

Cuiabá, 04 de maio de 2010.

----------------------------------------------------------------------------------------------------

DESEMBARGADOR RUI RAMOS RIBEIRO - PRESIDENTE DA PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

----------------------------------------------------------------------------------------------------

DOUTOR RONDON BASSIL DOWER FILHO - RELATOR

----------------------------------------------------------------------------------------------------

PROCURADOR DE JUSTIÇA




JURID - Processual penal. Recurso em sentido estrito [21/05/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário