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quarta-feira, 28 de abril de 2010

JURID - RSE. Embriaguez ao volante comprovada por teste. [28/04/10] - Jurisprudência


Recurso em sentido estrito. Embriaguez ao volante comprovada por teste de alcoolemia. Denúncia inepta. Rejeição.
MBA Direito Comercial - Centro Hermes FGV

Tribunal de Justiça do Distrito Federal - TJDF.

Órgão: Primeira Turma Criminal

Classe: RSE - Recurso em Sentido Estrito

N. Processo: 2009.04.1.007591-6

Recorrente(s): MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS

Recorrido(s): GILBERTO FREITAS DA SILVA

Relatora Desª.: Sandra De Santis

EMENTA

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - EMBRIAGUEZ AO VOLANTE COMPROVADA POR TESTE DE ALCOOLEMIA - DENÚNCIA INEPTA - REJEIÇÃO - OBSERVÂNCIA DO ART. 41 DO CPP - IMPRESCINDIBILIDADE.

I. Não há falar em inépcia se a denúncia descreve minuciosamente a conduta do autor, as circunstâncias, a classificação do crime e ainda traz o rol de testemunhas, em estrita observância ao art. 41 do CPP.

II. O crime do artigo 306 do CTB, com a redação da Lei 11.705/08, é de perigo abstrato. Para a consumação do delito basta que o motorista seja flagrado na direção de veículo automotor com quantidade de álcool igual ou superior a 0,6 gramas por litro de sangue, ou 0,3 miligramas por litro de ar expelido dos pulmões. Presume-se o perigo à segurança viária e à incolumidade alheia.

III. Recurso provido.

ACÓRDÃO

Acordam os Senhores Desembargadores da Primeira Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, SANDRA DE SANTIS - Relatora, LUCIANO VASCONCELLOS e MARIO MACHADO - Vogais, sob a Presidência do Senhor Desembargador MARIO MACHADO, em PROVER O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO POR MAIORIA, de acordo com a ata do julgamento e notas taquigráficas.

Brasília (DF), 21 de janeiro de 2010.

Desembargadora SANDRA DE SANTIS
Relatora

RELATÓRIO

Recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS contra decisão do MM. Juiz da Vara do Tribunal do Júri e Delitos de Trânsito do Gama/DF, que rejeitou a denúncia em desfavor de GILBERTO FREITAS DA SILVA pelo crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, por considerá-la inepta.

Requer seja recebida a inicial. Argumenta que o resultado do exame em aparelho de ar alveolar pulmonar (teste do bafômetro) foi 0,98 mg/l de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões. Sustenta haver prova suficiente para o recebimento da acusação pela prática do crime de embriaguez ao volante, considerado de perigo abstrato.

Contrarrazões às fls. 80/84.

A Procuradoria de Justiça opina pelo conhecimento e provimento do recurso.

É o relatório.

VOTOS

A Senhora Desembargadora SANDRA DE SANTIS - Relatora

Recurso tempestivo, cabível e regularmente processado.

Insurge-se o Ministério Público contra decisão que rejeitou a denúncia contra GILBERTO FREITAS DA SILVA pela prática do crime do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, por considerá-la inepta. Requer seja recebida a inicial.

Razão assiste ao Parquet.

O Magistrado teceu várias considerações acerca das alterações legislativas ocorridas no tipo de embriaguez ao volante. A despeito de ter reconhecido a existência de indícios da concentração suficiente de álcool no sangue do condutor, não recebeu a denúncia. Considerou-a inepta por deixar de especificar em que consistiam os sintomas típicos de embriaguez. Ressaltou que "a falta de narrativa pormenorizada de quais efeitos externos de alcoolemia foram constatados prejudica o exercício do direito à ampla defesa, bem como viola a regra estabelecida no artigo 41 do Código de Processo Penal." (fl. 58).

A questão reclama pronta rejeição. Ao contrário do MM. Juiz, não diviso deficiências ou omissões na peça acusatória. Está assim descrita:

"O MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, nos autos do Inquérito Policial em epígrafe, decide oferecer DENÚNCIA contra GILBERTO FREITAS DA SILVA, brasileiro, nascido aos 14.01.73, em João Pinheiro-MG, filho de Dirceu Nunes da Silva e Maria da Glória Freitas da Silva, residente na Quadra 22, Casa 34, Setor Oeste, Gama/DF, pela prática do seguinte fato delituoso:

No dia 22 de Julho de 2009, por volta de 00h10min, na Quadra 27 Geral, Comercial, via pública próximo ao Lote nº 07, Gama-DF, o denunciado conduzia o veículo VW/Quantum, placa JEG-4780/DF, estando com uma concentração de álcool por litro de ar expelido dos pulmões superior a 3 (três) décimos de miligrama, conforme teste realizado em etilômetro, cujo documento está acostado às fls. 06.

Na data dos fatos o acusado foi abordado por policiais em patrulhamento de rotina, ocasião em que aquelas autoridades perceberam que ele apresentava sinais físicos típicos de embriaguez.

Ato contínuo, foi o denunciado instado a realizar o exame pericial respectivo, tendo sido submetido ao teste de alcoolemia em aparelho de ar alveolar pulmonar, obtendo-se o resultado de 0,98mg de álcool por litro de ar expelido dos pulmões.

Assim sendo, o denunciado está incurso nas penas do art. 306 da Lei nº 9.503/97, com a redação dada pela Lei nº 11.705/08, razão pela qual o Ministério Público decide oferecer denuncia para que seja instaurada ação penal, requerendo a citação do acusado para respondê-la em todos os seus termos, bem como a intimação das testemunhas abaixo arroladas". (fls. 52/53)

Os elementos estipulados no artigo 41 do CPP foram observados. Vale dizer: o fato criminoso foi exposto com todas as circunstâncias; o acusado devidamente qualificado; a conduta criminosa classificada e as testemunhas arroladas. Garantido o exercício da ampla defesa ao réu. Não se há falar, pois, em inépcia da peça acusatória.

O exame foi realizado e o percentual aferido é superior ao permitido na lei. Consta que na abordagem os policiais notaram sinais de embriaguez e realizaram o teste do bafômetro. Constatou-se 0,98mg (noventa e oito miligramas) de álcool por litro de ar expelido do pulmão. Não há como deixar de reconhecer que a conduta possuía potencialidade lesiva a bens jurídicos. Se o denunciado não fosse parado, certamente continuaria a trafegar com o automóvel.

Existe intensa controvérsia a respeito da matéria. A doutrina diverge sobre a natureza jurídica do delito do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, especialmente após a alteração da redação pela Lei 11.705/08.

Luiz Flávio Gomes, por exemplo, defende tratar-se de crime de perigo concreto ou indeterminado. Exige para a caracterização do tipo, além da ingestão de bebida alcoólica acima do limite permitido, a exposição de algum bem jurídico a dano potencial em virtude da condução do veículo de maneira anormal.

Tenho posicionamento diferente. Filio-me à corrente daqueles que afirmam constituir hipótese de perigo abstrato. A retirada da expressão "expondo a dano potencial a incolumidade de outrem" do tipo penal corrobora a tese. Para a consumação do delito basta, portanto, que o motorista seja flagrado na direção de veículo automotor com quantidade de álcool igual ou superior a 0,6 gramas por litro de sangue, ou 0,3 miligramas por litro de ar expelido dos pulmões.

Neste sentido o magistério de André Luís Callegari:

"A técnica de tipificação buscada pelo legislador no Código de Trânsito até a presente reforma foi a de tipificar as condutas como sendo de perigo concreto (arts. 306, 308, 309, 310 e 311), isso porque ao final dos tipos penais encontram-se os termos: 'expondo a dano potencial a incolumidade de outrem'; 'desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada'; 'gerando perigo de dano'; etc.

Com as recentes modificações introduzidas pela Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, retornamos à utilização de delitos de perigo abstrato, isto porque basta a mera condução do veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 306, CTB), para que se configure o crime.

Portanto, o motorista que for flagrado dirigindo embriagado, de acordo com a nova lei, já cometeu o crime de trânsito, pois se trata de mera presunção de perigo (perigo abstrato). Ainda que o motorista esteja conduzindo o veículo corretamente, isto é, na mão correta de direção, em velocidade compatível, com o uso correto do cinto de segurança, respeitando a sinalização etc., estará sujeito à pena prevista no Código de Transito Brasileiro." (Delitos de perigo abstrato - um retrocesso no Código de Trânsito Brasileiro. In: Boletim IBCCRIM - Ano 16 - Nº 189 - Agosto - 2008, p. 14/15)

A leitura dos pareceres e das transcrições dos debates travados no Congresso Nacional por ocasião da votação da Lei 11.705/08 evidencia a adoção de uma política criminal expansionista, marcada pela antecipação da tutela penal em relação aos delitos de trânsito, fundamentada nas estatísticas sobre o número de vítimas fatais decorrentes da associação entre álcool e direção.

Não desconheço as implicações de um crescimento desmesurado do direito penal em um Estado Democrático de Direito, como o brasileiro. Acredito que a vocação deste ramo jurídico seja realmente a tutela dos bens mais caros à sociedade, observado o princípio da intervenção mínima e os postulados da subsidiariedade e da fragmentariedade. Entretanto, não reputo ilegítimo o uso de mecanismos diferenciados para tutela, inclusive penal, destes bens, desde que observados, logicamente, os limites estabelecidos pelos princípios e normas constitucionais.

Ao analisar a questão à luz do direito alemão, assim se pronunciou Claus Roxin:

"Na ciência alemã do Direito Penal, discute-se intensamente se a tendência de nosso legislador de permitir a punibilidade já no estágio anterior a uma lesão de bens jurídicos é justificável desde o ponto de vista do Estado de Direito. Por exemplo, a condução de um automóvel em estado de embriaguez é punível quando inclusive não ocorreu absolutamente nada. (...) O problema inerente a estas normas é que o comportamento culpado está ainda bastante distante da verdadeira lesão de bens jurídicos. Do conceito de proteção de bens jurídicos se infere, então, somente que, tratando-se de uma antecipação considerável da punibilidade, necessita-se fundamentar, especialmente porque isto é necessário para a proteção efetiva do bem jurídico. A fundamentação pode contribuir na hipótese da embriaguez ao volante, porque um condutor embriagado já não domina seu comportamento suficientemente, de modo que em cada momento pode ocorrer algo (...)" (ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Tradução André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 28)

Portanto, diante de dados concretos e de circunstâncias específicas pode o legislador adotar tipos penais de perigo abstrato, sem que isto necessariamente represente violação aos princípios penais constitucionalizados. Compartilha deste entendimento Guilherme de Souza Nucci:

"Constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato: partilhamos do entendimento de que esses delitos não ofendem nenhum princípio constitucional. Ao elaborar um tipo penal incriminador, valendo-se das regras da experiência, o legislador pode idealizar a proibição de uma conduta por gerar perigo indesejado à sociedade, como pode criar uma proibição se e quando gerar perigo insuportável à sociedade. O primeiro caso constituiu delito de perigo abstrato (ex.: é crime trazer consigo arma de fogo, sem autorização da autoridade competente, porque a experiência já ditou que o comportamento é daninho e perturba a paz social). No segundo caso, temos o perigo concreto (ex.: colocar em risco a vida ou a saúde alheia somente constitui delito do art. 132 do Código Penal se realmente houver risco direto e iminente de dano, a depender do caso concreto)." (Leis penais e processuais penais comentadas. 3ª edição. São Paulo: RT, 2008, p. 1100)

Ressalto que o Supremo Tribunal Federal, em obter dictum no julgamento do RHC 89.889/DF, consignou não se poder afirmar categoricamente a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Ao reconhecer esta natureza ao delito de porte de arma de fogo com sinal identificador suprimido, o STF asseverou ser necessário submeter cada tipo ao crivo do princípio da proporcionalidade, a fim de verificar a adequação dos meios, na hipótese a sanção penal, em face dos fins almejados, no caso a proteção de determinado bem jurídico. A Corte considerou, na espécie, haver razoabilidade na antecipação da tutela penal, diante da relevância do bem jurídico que a norma busca defender de ataques, qual seja a segurança pública. Por lançar luz sobre a discussão, transcrevo trecho do voto do Min. Gilmar Mendes:

"A criação dos crimes de perigo abstrato não representa por si só comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato muitas vezes acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuias ou de caráter coletivo, como meio ambiente, por exemplo. A antecipação da proteção penal em relação à efetiva lesão torna mais eficaz, em muitos casos, a proteção do bem jurídico. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um Direito Penal preventivo." (Min. Gilmar Mendes - RHC 89.889/DF)

Considero que no delito de embriaguez ao volante, a adoção de um tipo de perigo abstrato não afronta igualmente a razoabilidade. A antecipação da tutela penal é justificada pela magnitude dos bens jurídicos protegidos, particularmente o direito à vida e à integridade física, e pelo crescimento do número de casos em que são violados.

O legislador na hipótese, à vista de dados concretos sobre a violência no trânsito, optou legitimamente pelo modelo de "Direito Penal preventivo", mencionado pelo Min. Gilmar Mendes, para reformular o tipo do artigo 306 do CTB. A decisão de fixar um limite acima do qual a ingestão de álcool pressupõe a impossibilidade de condução de veículo automotor sem colocar em risco o tráfego viário e a incolumidade das pessoas é fundamentada em estudos científicos acerca dos efeitos do álcool sobre o organismo humano.

A previsão da concentração igual ou superior a 0,6 gramas de álcool por litro de sangue para a caracterização do delito de embriaguez ao volante reflete uma decisão de política criminal amparada no incremento do risco de acidentes.

Na hipótese, seja pela manifestação notória de perturbação comportamental, ameaça concreta à segurança viária e à incolumidade alheia, seja pela concentração de álcool detectada por meio do teste de alcoolemia, caracterizadora do perigo presumido, a conduta subsume-se ao art. 306 do CTB.

Dou provimento ao recurso para receber a denúncia e determinar o regular prosseguimento do feito.

O Senhor Desembargador LUCIANO VASCONCELLOS - Vogal

Com a eminente Relatora.

O Senhor Desembargador MARIO MACHADO - Vogal

Presentes os requisitos de admissibilidade do recurso, dele conheço.

Com a Lei nº 11.705, de 19/06/2008, o tipo penal do crime de embriaguez ao volante passou a ser: "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".

Assim abordei o novo tipo penal em artigo doutrinário intitulado "Crime de Alcoolemia ao Volante?":

"Alcoolemia é a presença de álcool etílico na circulação sangüínea. Aumenta à medida em que o etanol é absorvido pelo organismo e diminui lentamente, de acordo com a degradação do álcool pelo fígado. A taxa de alcoolemia indica a quantidade de álcool existente no sangue de uma pessoa, em determinado momento. Expressa-se em gramas ou decigramas por litro de sangue.

O Código de Trânsito Brasileiro assim tipificava o crime de embriaguez ao volante: "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem. Penas - Detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor".

Com a Lei nº 11.705/2008, o tipo penal passou a ser: "Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". As penas permaneceram idênticas.

Fácil perceber que, na redação antiga, dirigindo o motorista sob a influência de álcool, qualquer que fosse a concentração, e oferecendo risco potencial à segurança viária, estaria caracterizado, em tese, o crime de embriaguez ao volante. A prova não oferecia dificuldade. Recusando-se o motorista aos exames técnicos do etilômetro (bafômetro) e dosagem sangüínea, eram suficientes a documentação oficial da ocorrência, o exame médico clínico e a prova testemunhal, tudo indicando sinais do estado de embriaguez e a direção anormal. Não havia, na lei, a exigência de um determinado nível de alcoolemia, agora de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, que equivalem a 0,3 miligramas de álcool por litro de ar expelido no bafômetro.

Com o novo tipo, criou o legislador um crime de perigo abstrato, ou seja, sem ofensa a um bem jurídico? Basta dirigir em via pública com a concentração de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, mesmo normalmente, e haverá o "crime de alcoolemia"?

Não, porque isso é repelido pelo ordenamento jurídico. O bem protegido, quando se pune a embriaguez ao volante, é a segurança viária. Se esta não for afetada, se não houver qualquer perigo, ainda que potencial, crime não haverá. É elementar no direito penal que a existência de crime exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido. O legislador penal não está autorizado a incriminar condutas inofensivas, incapazes de ferir o interesse protegido. O princípio constitucional implícito da ofensividade, que se pode extrair do artigo 98, I, da Constituição Federal, não permite crime de perigo abstrato.

Segundo Nilo Batista, referido por Rogério Greco, uma das principais funções do princípio da lesividade é "proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico" (1). Não se pode incriminar o fato de alguém estar dirigindo em via pública com a concentração de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, se o fizer normalmente, não estando sob a influência de álcool ou embriagado.

Por isso, só haverá o crime de embriaguez ao volante quando o motorista dirigir em via pública, sob influência de álcool e com concentração deste por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, gerando perigo para a segurança viária, ainda que indeterminado. Pode não haver, no momento, perigo concreto a uma determinada pessoa, mas basta perigo indeterminado, isto é, um risco potencial para a segurança viária a partir da direção anormal. Isso ocorrerá, por exemplo, quando o motorista dirigir em ziguezague; não obedecer, ostensivamente, à sinalização e às regras de trânsito; evidenciar desorientação espaço-temporal etc.

Estar sob a influência de álcool, elemento subjetivo do tipo, não se encontra na leitura direta do artigo 306, mas no corpo do próprio Código de Trânsito, artigos 165 e 291, § 1º, I, com as alterações da nova lei. O artigo 165 explicita a necessidade, para caracterização da infração administrativa, de "dirigir sob a influência de álcool". Se assim é para a infração administrativa, com maior razão para a criminal. Já o inciso I do § 1º do artigo 291 indica que, para haver o crime, deve-se estar "sob a influência de álcool". Dissipando qualquer dúvida, o art. 4º-A da Lei nº 9.294/96, com a redação da Lei 11.705/2008, prescreve que "é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". O sistema, pois, não admite o crime se o motorista, apesar da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, não "dirigir sob a influência de álcool". Nesse sentido Damásio de Jesus(2) .

Desta forma, a nova lei, paradoxalmente, se mostra mais benéfica para quem dirigir sob a influência de álcool. Antes, qualquer que fosse a taxa de alcoolemia, poderia haver o crime. Hoje, é necessário, a mais, o elemento objetivo do tipo: concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas.

Aí se descortina o maior problema causado pela mudança, bem intencionada e infeliz. É o da prova.

Ensina a literatura médica que o único exame técnico capaz de precisar, com rigor científico, a quantidade de álcool metabolizado no sangue é a dosagem sangüínea. O etilômetro mede a concentração de álcool alveolar encontrado nos pulmões, com margem de erro, por isso a tolerância para a presença de até 2 (dois) decigramas de álcool no sangue, que equivalem a 0,1 miligrama de álcool por litro de ar expelido no bafômetro.

Tanto um como outro exame dependem do fornecimento de material pelo motorista, sangue, ou ar expelido pelos pulmões. Sucede que, por força de princípio abrigado na Constituição Federal (art. 5º, LXIII) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, II, g), ratificada pelo Brasil, ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo, pelo que não se pode extrair qualquer conseqüência desfavorável da sua recusa em fornecer material para o exame técnico, e tem direito a disso ser informado. Tranqüila, quanto à matéria, a jurisprudência da Corte Suprema (HC 93.916-PA, Rel. Ministra CARMEN LÚCIA, 1ª Turma, 10/06/2008, unânime, In DJe nº 117, de 27/06/2008, e HC 78.708/SP, 1ª Turma, Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, 09/02/1999, DJ de 16/04/1999, p. 8). Exame realizado sem a prévia informação ao motorista de que se poderia recusar a ceder o material constitui prova ilícita, por força do artigo 157, caput, do Código de Processo Penal.

Pode chocar a opinião pública que um motorista, aparentando embriaguez, não seja condenado por se ter recusado a dar sangue ou soprar no etilômetro. Mas o assassino também se pode negar a confessar seu crime. A opção pelo silêncio faz parte de um sistema garantista de direitos fundamentais indispensáveis ao Estado democrático de Direito, conforme proclamado pelo STF (HC 79.812/SP, Tribunal Pleno, Rel. Ministro CELSO DE MELLO, 08/11/2000, DJ de 16/02/2001, p. 21).

Ainda que o motorista, informado do seu direito, consinta em fornecer o material e o exame acuse taxa de alcoolemia igual ou superior aos 6 (seis) decigramas, não estará, só por isso, configurado que dirigia "sob a influência de álcool" ou embriagado. As pessoas têm diferentes tolerâncias ao álcool e nelas a mesma taxa de alcoolemia produzirá efeitos diversos, que, ainda, dependerão de circunstâncias várias, como peso, idade, estado emotivo, hábito de beber, saúde, ter-se ou não alimentado etc. Algumas pessoas, atesta a comunidade médica, poderão estar conduzindo veículo normalmente, com taxa de alcoolemia acima da permitida; outras, com taxa inferior, poderão apresentar embriaguez e dirigir anormalmente(3). Considerado só o resultado da dosagem do álcool no sangue, é possível cometer-se enganos. Daí a necessidade, também, do exame clínico em que o médico avaliará as manifestações físicas, neurológicas e psíquicas do examinado, atestando se dirigia ou não embriagado.

Como decorrência da inserção do novo elemento objetivo no tipo penal, qual seja, a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, o que faz a recente lei mais benéfica, tem incidência o mandamento do inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal, observado no parágrafo único do artigo 2º do Código Penal. Retroage a nova lei, mais favorável. Assim, para eventual condenação, ainda que anterior o fato, deve-se demonstrar o novo elemento objetivo da figura típica, sem o qual esta não existe. Segue-se que, nos processos penais em curso, relativos ao crime de embriaguez ao volante, não tendo sido realizado exame técnico ou, feito, não se tenha apurado a presença de nível de alcoolemia no sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, é inviável a condenação(4), devendo ser o acusado absolvido com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal. No máximo, e em sendo o caso, aplicado o artigo 383 do mesmo Código, com a nova redação da Lei nº 11.719/2008, caberá a desclassificação para o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, definido no artigo 132 do Código Penal, com a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal, competente para a espécie, em razão da pena privativa de liberdade máxima cominada.

Evidente que os graves defeitos da nova e bem intencionada lei não obstam a continuidade da efetiva fiscalização no trânsito - responsável pela queda da trágica estatística de acidentes, nem a imposição das penalidades administrativas que se mostrem consentâneas com a ordem jurídica vigente, mas autorizam o seguinte apelo ao legislador: volte à redação anterior do artigo 306! Quanto mais cedo, melhor!".

No caso, efetivamente, a denúncia limita-se a imputar ao recorrido ter sido flagrado, em procedimento de blitz, com concentração de álcool caracterizadora de embriaguez. Não lhe imputa direção anormal ou perigosa.

A fiscalização era de rotina, não tendo sido parado o recorrido por qualquer infração de trânsito. Feito exame do etilômetro, acusou medida superior ao máximo de 0,30 miligramas de álcool por litro de ar expelido dos pulmões.

Como a denúncia não imputa ao recorrido o dirigir "sob a influência de álcool", resulta atípica a conduta nela descrita, que não contempla o elemento subjetivo do tipo. Repita-se que só haverá o crime de embriaguez ao volante quando o motorista dirigir em via pública, sob influência de álcool e com concentração superior à permitida pela lei, gerando perigo para a segurança viária, ainda que indeterminado.

Com efeito, o bem protegido, quando se pune a embriaguez ao volante, é a segurança viária. Se esta não for afetada, se não houver qualquer perigo, ainda que potencial, crime não haverá. É elementar no direito penal que a existência de crime exige um mínimo de lesividade ao bem jurídico protegido. O legislador penal não está autorizado a incriminar condutas inofensivas, incapazes de ferir o interesse protegido. O princípio constitucional implícito da ofensividade, que se pode extrair do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal, não permite crime de perigo abstrato.

Segundo Nilo Batista, referido por Rogério Greco, uma das principais funções do princípio da lesividade é "proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico". Não se pode incriminar o fato de alguém estar dirigindo em via pública com a concentração de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, se o fizer normalmente, não estando "sob a influência" de álcool.

Só haverá o crime de embriaguez ao volante quando o motorista dirigir em via pública, sob influência de álcool e com concentração deste por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, gerando perigo para a segurança viária, ainda que indeterminado. Pode não haver perigo concreto a uma determinada pessoa, mas basta perigo indeterminado, isto é, um risco potencial para a segurança viária a partir da direção anormal. Isso ocorrerá, por exemplo, quando o motorista dirigir em ziguezague; não obedecer, ostensivamente, à sinalização e às regras de trânsito; evidenciar desorientação espaço-temporal etc. Isso, contudo, não corresponde ao caso dos autos.

Estar sob a influência de álcool, elemento subjetivo do tipo, não se encontra na leitura direta do artigo 306, mas no corpo do próprio Código de Trânsito, artigos 165 e 291, § 1º, I, com as alterações da nova lei. O artigo 165 explicita a necessidade, para caracterização da infração administrativa, de "dirigir sob a influência de álcool". Se assim é para a infração administrativa, com maior razão para a criminal. Já o inciso I do § 1º do artigo 291 indica que, para haver o crime, deve-se estar "sob a influência de álcool". Dissipando qualquer dúvida, o art. 4º-A da Lei nº 9.294/96, com a redação da Lei 11.705/2008, prescreve que "é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção". O sistema, pois, não admite o crime se o motorista, apesar da concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou de 0,3 miligramas de álcool por litro de ar expelido dos pulmões, não "dirigir sob a influência de álcool".

Confira-se, sobre a questão, a lição da melhor doutrina:

"Duas são as condutas incriminadas (agora): (a) conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas e (b) conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Quando se trata de álcool é uma coisa; quando se trata de 'outra substância psicoativa que determine dependência' (maconha, por exemplo) seria outra coisa. Na hipótese de álcool o tipo legal (a letra da lei) não exige estar 'sob a influência'; no caso de maconha ou outra droga a letra da lei exige 'estar sob a influência'.

O que significa estar 'sob a influência' de uma substância psicoativa? O estar 'sob influência' exige a exteriorização de um fato (de um plus) que vai além da embriaguez, mas derivado dela (nexo de causalidade). Ou seja: não basta a embriaguez (o estar alcoolizado), impõe-se a comprovação de que o agente estava sob 'sua influência', que se manifesta numa direção anormal (que coloca em risco concreto a segurança viária). Note-se, não se exige a prova de risco concreto para uma pessoa determinada. Não é isso. Basta que a direção tenha sido anormal (em zig-zag, v.g.): isso já é suficiente para se colocar em risco a segurança viária. Em outras palavras: não se trata de um perigo concreto determinado (contra pessoa certa), sim, de um perigo concreto indeterminado (risco efetivo para o bem jurídico coletivo segurança viária, mesmo que nenhuma pessoa concreta tenha sofrido perig

Justifica-se o tratamento lingüístico (literal) distinto dado ao álcool (o tipo legal não exigiu, nesse caso, o 'estar sob a influência')? A resposta só pode ser negativa. O estar 'sob a influência' de substância psicoativa exigida na parte final do dispositivo (art. 306) tem que valer também para a primeira parte do tipo legal (ou seja: para a embriaguez decorrente de álcool).

Por quê? Porque do contrário estaríamos admitindo o perigo abstrato no Direito penal, o que (hoje) é uma heresia sem tamanho, quando se estuda o princípio (constitucional implícito) da ofensividade, que não permite nenhum delito de perigo abstrato (cf. GOMES, L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). Toda tipo legal que descreve um perigo abstrato deve ser interpretado na forma de perigo concreto (ainda que indeterminado, que é o limite mínimo para se admitir um delito, ou seja, a intervenção do Direito penal).

Há muitos outros argumentos para se concluir que a direção sob álcool (no art. 306) tem que revelar o estar sob sua 'influência' (ou seja: uma direção anormal). Dentre eles destaca-se o seguinte: até mesmo a infração administrativa correspondente (novo art. 165 do CTB), agora, depois da Lei 11.705/2008, a ela faz referência. Diz o novo art. 165: 'Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência'. Se a infração administrativa, que é o menos, exige o 'estar sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância', com muito mais razão essa premissa (essa elementar típica) tem que ser admitida para a infração penal (que é o mais)" (GOMES, Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito - Lei nº 11.705/2008: novo delito de embriaguez ao volante. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2008.).

Corretos os fundamentos da r. decisão de rejeição da denúncia.

Pelo exposto, atípica a conduta, porque ausente o elemento subjetivo do tipo, peço vênia à eminente relatora e nego provimento ao recurso, mantendo a decisão de primeiro grau, que rejeitou a denúncia.

É como voto.

DECISÃO

Provido, por maioria o recurso.

DJ-e: 20/04/2010

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1 - GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 8ª ed. Niterói: Impetus, 2007. v. I, p. 53. [Voltar]


2 - Embriaguez ao Volante: Notas à Lei n. 11.705/2008, 8/7/2008, In http://blog.damasio.com.br. [Voltar]


3 - FRANÇA, Genival Veloso de. Considerações em Torno da Perícia da Embriaguez e da Alcoolemia. Disponível em 'http://www.revistademedicinalegal.com.br/a2.1.htm', 23/7/2008. [Voltar]


4 - Confira-se MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro. Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei nº 9.503/1997, Código de Trânsito Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2008. [Voltar]




JURID - RSE. Embriaguez ao volante comprovada por teste. [28/04/10] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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