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segunda-feira, 14 de setembro de 2009

JURID - Vara do RJ proíbe vaquejadas [14/09/09] - Jurisprudência


5ª VF de São João do Meriti proíbe realização de vaquejadas


AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2005.51.10.005230-3

AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

RÉUS: PARQUE ANA DANTAS PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA.

JONATAS DE OLIVEIRA DANTAS FILHO

FUNDAÇÃO ESTADUAL DE ENGENHARIA DO MEIO AMBIENTE - FEEMA

INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA

JUIZ FEDERAL: DR. VLADIMIR SANTOS VITOVSKY

S E N T E N Ç A

1. RELATÓRIO.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ajuizou ação civil em face de PARQUE ANA DANTAS PROMOÇÕES E EVENTOS LTDA.; JONATAS DE OLIVEIRA DANTAS FILHO; FUNDAÇÃO ESTADUAL DE ENGENHARIA DO MEIO AMBIENTE " FEEMA e INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS IBAMA objetivando a suspensão imediata das atividades denominadas "vaquejadas" ou similares, bem como outros eventos de mesmo porte, sob pena de fixação de multa de R$100.000,00 (cem mil reais), por dia de descumprimento da ordem judicial; a fiscalização das atividades do Parque Ana Dantas, por parte da FEEMA e do IBAMA, mediante a tomada de todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e seu entorno, não podendo autorizar nenhuma atividade que implique submissão de animais à crueldade, tais como rodeios ou "vaquejadas"; e a condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, em prol da Reserva do Tinguá.

Como causa de pedir, sustenta que, a presente ação civil pública tem por objeto obstaculizar a realização de vaquejadas, eventos de cunho comercial organizados pelos dois primeiros réus, postulando ainda que os demais réus cumpram seus deveres de fiscalização das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, mediante levantamento da atual infra-estrutura do Parque Ana Dantas e a tomarem todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e seu entorno.

Alega que o Parque Ana Dantas se localiza a cerca de 600 metros do limite sul-sudeste da Reserva Biológica do Tinguá, unidade de conservação federal criada pelo Decreto 97.780/89, inserindo-se na área circundante de raio de dez quilômetros de que trata a Resolução Conama 13 de 1990. Aduz que o PARQUE tem vinte anos de funcionamento, e que realiza a "Vaquejada", evento que consiste na derrubada de boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão dez metros uma da outra. O boi deve cair, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para que os pontos sejam válidos. Considera que o evento envolve brutalidade, maltrata e expõe à crueldade os animais, tratando de evento de grandes proporções, que conta com a participação de 400 duplas de vaqueiros, exigindo estrutura que reiteradamente tem causado danos ambientais na área de entorno da Reserva Biológica do Tinguá, e que, por tal motivo, os proprietários do PARQUE respondem à ação penal pela prática de crimes contra o meio ambiente, existindo, ainda, procedimento administrativo na Procuradoria da República de São João de Meriti para apuração de responsabilidade civil ambiental, em que se pretende a recuperação da área degradada, bem como procedimento em curso no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro envolvendo o mesmo procedimento.

Alega a inconstitucionalidade das leis federais 10.220/2001, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o à atleta profissional, e a lei 10.519/2002, que dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária do animal, quando da realização de rodeio. Sustenta a inconstitucionalidade de tais diplomas por violarem o art. 225 VII da Constituição que veda as práticas que submetem os animais à crueldade.

Juntou documentos às fls. 23-194.

Decisão de fls. 202-204, antecipando em parte os efeitos da tutela jurisdicional tão-somente para que os dois primeiros réus adotassem todas as medidas necessárias a fim de evitar que qualquer pessoa, durante a realização do evento denominado "Vaquejada de Xerém", entre nos limites da Reserva Biológica do Tinguá, assim como ocorra qualquer dano ecológico ou alteração no ecossistema preservado.

Dessa decisão o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL interpôs Agravo de Instrumento às fls. 207-220.

Manifestação do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls.222-223 requerendo que fossem oficiados o IBAMA e a FEEMA para que procedam à fiscalização do PARQUE, apurando os danos ambientais eventualmente causados pela realização do evento, o que foi deferido pelo juízo em decisão de fls. 224.

Contestação do IBAMA de fls. 241/244 na qual alega que já tomou as providências necessárias para coibir esse tipo de evento, dando conta da inexistência de licenciamento ambiental, lavratura de Auto de Infração e Termo de Embargos referentes ao evento, sustentando a perda do objeto.

Juntada de documentos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls.247- 302, referentes à Notificação da primeira ré, lavrada pela FEEMA, com auto de constatação de dano ambiental, bem como apresentado o Projeto de Estabilização da Encosta e o Projeto de Revitalização do Rio Saracuruna dirigido ao IBAMA pelo segundo réu.

Solicitação às fls.303-309 do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL de reforma da antecipação da tutela concedida, pleiteando a imediata suspensão da 23ª Vaquejada de Xerém, prevista para os dias 24 a 26 de março de 2006, juntando documentos às fls.310-311, sobre a qual, o juízo decidiu às fls.312-315, antecipando parcialmente os efeitos da tutela jurisdicional em termos análogos à decisão de fls.203-204.

Decisão às fls. 363-365 do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, negando seguimento ao Agravo de Instrumento anteriormente interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.

Contestações do PARQUE e do segundo réu às fls.366-377, juntando procuração e documentos às fls.378-470. Sustenta a ausência de pedido certo e determinado, pois o pedido é genérico, bem como seria impossível a condenação em danos morais. Requer a suspensão do processo, por haver ação penal em trâmite na 3ª Vara Federal de São João de Meriti (Processo n. 2004.51.10.003954-9), imputando ao segundo réu a prática de crime ambiental, e requerendo sua reparação. No mérito em si, sustenta a ausência de danos, e que a Lei Estadual 3.201/98 permite a realização de eventos denominados Rodeios e Vaquejadas no Estado do Rio de Janeiro, desde que conte com a presença e fiscalização de um médico veterinário. Alega que já protocolou o Projeto de Reparação dos pequenos danos ambientais e que possui licença ambiental para funcionamento.

Em réplica, manifestou-se o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, alegando intempestividade da contestação do primeiro e segundo réus, e sustentando a rejeição das preliminares dos réus.

Ofício da FEEMA de fls. 477-480 e do Comandante da Polícia Militar às fls.481.

Contestação da FEEMA de fls. 482-493, alegando a falta de norma material definidora da obrigação de fazer requerida; invasão de competência do poder executivo; cumulação irregular de ações; e no mérito em si, que a competência é do IBAMA, e que o PARQUE já funciona no local há mais de 20 (vinte) anos, logo não há que se falar em omissão, questionando a suposta inércia do autor; a prevenção do juízo da 5ª Vara Federal de São João de Meriti, em face do ajuizamento de duas ações civis públicas (Processos n. 2004.51.10.008329-0 e 2004.51.10.008528-6), requerendo a suspensão desta ação até o julgamento daquelas, na forma do art. 265 IV do CPC.

Tendo em vista a realização da "Vaquejada de Xerém" nos dias 9 a 11 de março de 2007, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL formulou às fls.498-508 novo pedido de antecipação de tutela, alegando, inclusive, que a Lei estadual 3.714/2007 veda a apresentação de animais em espetáculos circenses, juntando os documentos de fls.510-533, tendo o juízo deferido em parte a medida, em decisão de fls. 534-536, tão-somente para determinar que a FEEMA designe médico veterinário para comparecer ao evento em um dos dias previstos (9, 10 ou 11 de março) a fim de realizar constatação e relatório sobre os tratos dispensados aos animais que são usados no evento.

Nova manifestação do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls.546-552, juntando DVD (fls.589) com imagens da 24ª "Vaquejada de Xerém", com requerimento de que fosse determinado que os réus notificassem ao autor com antecedência mínima de 45 dias a realização dos eventos, a juntada do procedimento administrativo da FEEMA, concessório da licença LO-FE010732, a determinação de que o IBAMA verificasse a vistoria no local, do próximo evento, verificando a condição dos animais e o tratamento que lhes é dado, os impactos do evento sobre a REBIO, o que foi deferido pelo juízo em decisão de fls. 555.

Manifestação da FEEMA às fls. 554, reforçando sua exclusão do feito, e juntando o procedimento administrativo concessório da licença ambiental E-07/203152/05 às fls. 590-800.

Realizada Audiência especial, nos termos da Assentada de fls.807-808, na qual o primeiro e segundo réus juntaram o Projeto de Adequação Sonora, Projeto de Recuperação das Áreas Degradadas às fls.810-908; argumentando que além da Lei federal 10.220/2001, que regulamenta a atividade de peão de rodeio, equiparando-o a atleta profissional, e da Lei Estadual 3.021/98, que autoriza a realização de rodeios e Vaquejadas no Estado do Rio de Janeiro, há a Lei Municipal 2004, de 6 de novembro de 2006 que autoriza a realização de rodeios e "vaquejadas" no Município de Duque de Caxias.

Na referida audiência, FEEMA juntou o Relatório de Vistoria às fls. 913-916, concluindo que no período da vistoria não foram constados maus tratos em nenhum animal presente na propriedade.

Tentada a conciliação, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propôs acordo nos seguintes termos: que os eventos do Parque não mais utilizem animais; que seja cumprida licença fornecida pela FEEMA no sentido de ser realizado aviso prévio de 45 dias à FEEMA, ao IBAMA e à ReBio Tinguá, em relação ao evento, com a apresentação dos projetos de adequação sonora e recuperação das áreas degradas (mata ciliar e área do talude,e demais exigências constantes da licença. Pelo primeiro e segundo réus foi dito que não há como haver composição que imponha a não utilização e animais, eis que significaria o fim dos eventos que se realizam apenas duas vezes por ano, e que nos eventos há fiscalização de agentes da vigilância sanitária do Estado.

Foi redesignada nova audiência de conciliação haja vista a possibilidade de composição amigável.

Manifestação do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls.917-919, impugnando o laudo de vistoria da FEEMA.

Realizada a nova audiência de conciliação, nos termos da assentada de fls. 920-921, foi determinada a realização de prova pericial na especialidade de zootecnia ou veterinária.

Ao apresentar seus quesitos, os primeiros réus juntaram o Projeto Social do Centro de Equoterapia e Reabilitação para Crianças com Necessidades Especiais às fls.950-975.

Petição de fls.993-994 e 995-996 dos dois primeiros réus informando a realização da "Vaquejada de Xerém" nos dias 7-9 de março de 2008.

Juntado o laudo pericial às fls. 1018-1032 e Laudo do IBAMA de fls. 1039-1040, sobre os quais se manifestou o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls. 1042-1050, juntando documentos de fls. 1051-1251 e fls. 1237-1249, e os dois primeiros réus às fls.1255-1256, juntando laudo de seu assistente técnico às fls.1257-1280 e CD de fls.1281.

Petição do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL de fls. 1252, requerendo a oitiva de veterinários especialistas em bois e cavalos.

Decisão de fls. 1227-1228 determinando a realização de audiência para oitiva das testemunhas e do perito tal qual requerido.

Manifestação de FEEMA de fls.1253-1254 apresentando quesitos ao perito, gravitando na questão cultural da "Vaquejada" e questionando a submissão dos animais à crueldade.

Realizada Audiência especial nos termos da Assentada de fls.1290-1291, sendo naquela oportunidade indeferida a oitiva das testemunhas veterinárias, já que na oportunidade não foram arrolados como assistentes técnicos, sendo deferida a juntada de documentos requerida pelos primeiros réus às fls. 1292-1303.

Realizada a última audiência nos termos da Assentada de fls.1313-1314, na qual foi ouvido o perito.

Alegações finais do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL às fls. 1314 verso, na qual pugna pela procedência do pedido reportando-se a suas peças anteriores, sobretudo às de fls.1042-1050 e à avaliação técnica de fls.1051-1072 dos veterinários de renome que, ao contrário do que teria entendido o perito do juízo, entendem que as provas de Vaquejada constituem, por si só, uma forma de submissão dos animais a maus-tratos, e crueldade.

Alegações finais de FEEMA às fls. 1318-1319 requerendo sua exclusão da lide, eis que, ao longo do processo, foi concedida a competente licença de operação aos dois primeiros réus.

Memoriais apresentados pelos dois primeiros réus às fls. 1321-1325, reforçando seus argumentos de que a Vaquejada é uma manifestação esportista e cultural, permitida e autorizada no âmbito municipal (Lei 2.004/06), estadual (Lei 3.021/98) e federal (Lei 10.220/91), e que a FEEMA concedeu a competente licença de operação, e que a "Vaquejada" de Xerém, ao longo de seus mais de vinte anos de realização nunca apresentou qualquer atividade que possa ser considerada como maus tratos.

Memórias do IBAMA às fls. 1329-1331, sustentando que sempre atuou cumprindo seu dever legal de fiscalização, tomando as medidas cabíveis, lavrando autos de infração e termos de embargo/interdição (fls. 180/191).

É o relatório do necessário. Passo a decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

O objeto da lide

Conforme se vê da inicial de fls. 18-19, objetiva-se com esta Ação Civil Pública, em relação ao PARQUE ANA DANTAS e a JONATAS "a imediata suspensão das atividades denominadas "vaquejadas" ou similares, bem como outros eventos do mesmo porte", e, em relação à FEEMA e ao IBAMA "o dever de fazer, consistente na fiscalização das atividades do PARQUE ANA DANTAS, mediante tomada de todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e de seu entorno, observando-se que, no exercício do poder de polícia administrativo de que estão legalmente investidos não devem autorizar nenhuma atividade que implique submissão de animais a crueldade, tais como rodeios ou "vaquejadas", cabendo-lhes, ademais, zelar pela efetividade do mencionado poder de polícia, socorrendo-se eventualmente do Poder Judiciário, mediante a atuação de suas procuradorias", além da condenação dos réus ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, sendo tal valor arbitrado pelo Juízo e destinado em prol da Reserva Biológica do Tinguá.

Por seu turno, às fls. 3 da inicial é consignado em seu item 1. O OBJETIVO DA AÇÃO que "a presente ação civil pública visa obstaculizar a realização de "vaquejadas", eventos de cunho comercial organizados pelos dois primeiros réus" e que "postula-se, outrossim, que os demais réus (IBAMA e FEEMA) cumpram os seus deveres de fiscalização das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, mediante levantamento da atual infraestrutura do PARQUE ANA DANTAS e tomada de todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e de seu entorno".

Nestes termos, entendo que o que está em discussão é a possibilidade ou proibição de realização do evento "vaquejada". A rigor, a proibição de realização de "rodeios" somente aparece de forma breve no pedido de liminar de fls. 18 direcionado ao IBAMA e à FEEMA. Com efeito, não é nem mesmo mencionado no item 1 da inicial de fls. 3, que, como visto, tem por título do objetivo da ação. Por outro lado, a discussão sobre a possibilidade vs. proibição do rodeio é completamente distinta da relacionada à "Vaquejada", na medida em que envolve a análise da utilização de esporas e do sedém, o que não faz parte da inicial nem da perícia realizada.

A propósito, às fls. 4 observa-se a descrição tão-somente do evento "Vaquejada". Este item 3 da inicial, denominado de "DOS FATOS", reporta-se apenas à "Vaquejada", definida como uma "competição cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra. O boi deve cair, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, para que os pontos sejam válidos".

Assim, não obstante seja mencionado às fls. 13-14 da inicial, em seu item 6, intitulado "DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS QUE REGULAMENTAM OS RODEIOS E VAQUEJADAS", e que seja transcrito o texto da União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), cujos segundo e terceiro parágrafos façam menção também aos rodeios, toda a lide gravitou em torno da realização de "vaquejadas", isto é, da realização de competição cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra, devendo o boi deve, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, para que os pontos sejam válidos.

De fato, a própria perícia, cujo laudo segue às fls. 1018 a 1032 é sobre, tão-somente, quanto à "Vaquejada". Vê-se ainda do item B) da quesitação de fls. 1023-104, (quesitos sobre a utilização dos animais no evento), é feita a menção apenas à utilização de bovinos nas provas de "Vaquejada" , não havendo alusão à realização de "rodeios". A resposta ao item A. 1. dos quesitos do réu de fls. 1029 é taxativa: sobre quais as atividades do evento que fazem uso de animais, respondeu o perito que no evento periciado foram realizadas as provas de Tambor, Baliza, Apartação e Vaquejada, bem como, um leilão de eqüinos. Outrossim, não se verifica a realização de "rodeios" no Parque Ana Dantas.

De outro giro, também entendo que não está em discussão a realização do evento como um todo, isto é, das outras provas e dos espetáculos musicais, bem como da necessidade de revegatação do local. A adequação sonora, a recomposição da mata ciliar e da área do talude, foram até abordados durante a lide, mas não se caracterizam como seu objeto específico de discussão. Repita-se: a perícia foi realizada no evento quanto à utilização dos animais nas apresentações. Igualmente, a incolumidade da fauna e da flora da Reserva do Tinguá, embora, como não poderia deixar de ser, devam ser sempre respeitados e protegidos, não está propriamente em discussão nesta ação. Ou seja, aqui não está, a rigor, se discutindo que a realização de eventos, qualquer que seja ele, no PARQUE ANA DANTAS, provoque, por si só, prejuízos à ReBio Tinguá, embora, enfatize-se, sempre deva ser respeitada a adequação sonora, a proteção da fauna e da flora da Reserva Biológica do Tinguá, bem como determinada a eventual necessidade de revegetação e recomposição da flora, se necessário.

Neste sentido, a petição do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL de fls. 918 é esclarecedora. Em seus exatos termos, o autor pontua que:

"os pontos controvertidos cingem-se aos termos em que inicialmente proposta a Ação, já que a degradação ambiental existente na área do Parque não é propriamente objeto da presente Ação, tendo sido discutida somente porque a apresentação dos projetos de recuperação constavam como condicionantes da licença de operação expedida."

Assim, considerando os termos do pedido, da causa de pedir, da perícia realizada, concluo que a lide versa tão-somente quanto à possibilidade ou proibição da realização de "Vaquejada" entendida como competição cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra, devendo o boi deve, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, para que os pontos sejam válidos, ou seja, uma disputa entre várias duplas, que montados em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa específica para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal, na qual cada vaqueiro tem uma função, um é o batedor de esteira (encarregado de tanger o boi para perto do derrubador, e pegar o rabo do boi e passar para o colega), e o outro é o puxador (é o encarregado de puxar o rabo do boi e de derrubá-lo).

As preliminares dos réus

PARQUE ANA DANTAS e o segundo réu alegaram, em preliminar, a ausência de pedido certo e determinado, pois o pedido seria genérico, bem como seria impossível a condenação em danos morais. Requereram a suspensão do processo, por haver ação penal em trâmite na 3ª Vara Federal de São João de Meriti (Processo n. 2004.51.10.003954-9), imputando ao segundo réu a prática de crime ambiental, e requerendo sua reparação.

Independentemente da discussão acerca da tempestividade de sua contestação, merecem ser rejeitadas tais preliminares. Como visto no item acima, o pedido não é genérico, mas sim certo e determinado: objetiva-se a proibição da realização da "Vaquejada", tal qual definida acima, bem como a condenação dos réus no pagamento de danos morais, pedido, lícito e possível. Discutir o cabimento da condenação de indenização por danos morais, isto é, se é possível falar em dano moral a uma coletividade, é análise de mérito, e não preliminar.

Por sua vez, a existência de ação penal em trâmite na 3ª Vara Federal de São João de Meriti (Processo n. 2004.51.10.003954-9), não impõe a suspensão da presente ação, ante a já conhecida independência das instâncias cível, criminal e administrativa. Ademais, como já dito, não vislumbro vinculação alguma entre tal ação penal, que versa sobre a prática de um crime ambiental e a proibição da realização do evento "Vaquejada". Os réus podem ser perfeitamente absolvidos na ação penal, isto é, pode-se constatar que o fato não é típico nem injurídico, mas mesmo assim a atividade pode ser proibida. Veja o caso da apresentação de animais em circos, que embora não seja crime, é proibida pela Lei Estadual 3.704 de 2007. Ademais, o direito ambiental é regido pelos princípios da precaução e da prevenção, além de existir a possibilidade de responsabilidade sem culpa e a responsabilidade pelo risco.

Com relação às preliminares levantadas pela FEEMA, alegando a falta de norma material definidora da obrigação de fazer requerida; a invasão de competência do poder executivo; e cumulação irregular de ações, rejeito todas. Discutir a existência de norma definidora da obrigação de fazer requerida é mérito. Igualmente, analisar a relação entre os poderes. A propósito, foi o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal que no RE 153.531 proibiu a realização do evento denominado "farra do boi", do que se conclui que é perfeitamente cabível o Poder Judiciário analisar possibilidade ou proibição da utilização de animais em entretenimentos. Por fim, não há que se falar em cumulação irregular de ações já que o pedido, como sucessivas vezes já dito, é certo e determinado para cada réu.

O direito dos animais e a proteção à manifestação cultural e ao desporto

No mérito em si, mais do que a pretensão em proibir a realização de um evento, o que está em discussão é a relação entre a proteção dos [outros] animais e a tutela das manifestações culturais e desportivas, isto é, um aparente conflito entre os direitos dos animais (em não serem submetidos à crueldade) e os direitos do homem (em ter assegurada sua manifestação cultural e desportiva). São dois direitos fundamentais que parecem assentar em um conflito aparente entre si. Com efeito, nenhum direito é absoluto, pois há sempre outro direito fundamental, princípio ou valor, para limitá-lo. Assim, diante de um caso concreto, duas normas constitucionais distintas, que garantam direitos, podem entrar em aparente conflito. Neste sentido, Liliane Roriz dispõe que "há que se distinguir, porém, que, em determinadas hipóteses, inexiste, na realidade, colisão de direitos; nessas situações, o que ocorre é que a conduta questionada não se encontra dentro do âmbito de proteção do direito fundamental invocado".

No caso dos autos, temos, de um lado, a alegação de que a realização de "Vaquejadas" constitui, por si só, uma prática que submete os animais à crueldade e a maus tratos, violando, o art. 225 VII da Constituição de 1988. De outro, o argumento de que tal evento não constituiria danos aos animais, e, que, tratar-se-ia de uma manifestação cultural e desportiva, protegida pelo art. 215 caput e §1º da CR88 e pelo art.217 caput, IV e §3º da CR88.

É importante observar que Hart já destacava o papel de intérprete, por entender que a aplicação do Direito possuiria uma textura aberta, devendo haver uma compreensão estrutural e funcional dele, já que é impossível a norma ser sempre precisa. É necessário que esteja inserida em um determinado contexto. Como todas as possibilidades de comportamento e situações não podem ser predeterminadas, conhecidas a priori, surgem casos que incidem naquilo que Hart chama de zona de penumbra normativa, ou seja, "casos em que não se pode precisar se a conduta se enquadra sob a norma ou não, porque não é clara a finalidade da norma em questão".

Para Hart, em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não regulados, nos quais nenhuma decisão é ditada pelo Direito, que aparece então como indeterminado ou incompleto. Neste sentido, o autor defende o poder discricionário judicial, que é intersticial, ou seja, exercido nos interstícios, nas lacunas do ordenamento.

Dworkin rejeita esta imagem de que o Direito é parcialmente indeterminado ou incompleto, e de que o juiz preenche as lacunas, os interstícios, através do exercício do poder discricionário. Para Dworkin, isto é uma concepção enganadora tanto do Direito quanto do raciocínio judicial. Entende que além do Direito estabelecido explícito, há princípios jurídicos implícitos, que conferem justificação moral, coerência e ajuste aos princípios explícitos. Assim, neste sentido o Direito nunca é incompleto ou indeterminado, pelo que, o juiz nunca tem oportunidade de sair do Direito e de exercer um poder de criação do Direito, para proferir uma decisão.

Dworkin dá especial importância aos casos difíceis, destacando o papel dos princípios na sua resolução. O desafio do juiz para ele não é a mera lacuna da lei. Com efeito, o seu foco de atenções está nas situações não claramente cobertas pelo ordenamento jurídico entendido exclusivamente como um sistema de normas regras, os casos controversos, em que o Direito não oferece uma resposta definitiva, seja por incerteza sobre qual das várias normas deve ser aplicada ao caso concreto, seja por contradição entre elas, ou por lacuna na lei. Dworkin rejeita a idéia de que existam dois estágios no processo de decisão: um em que o juiz descobre em primeiro lugar que o Direito existente não consegue ditar uma decisão em qualquer sentido; e outro em que o juiz se afasta então do Direito existente para criar Direito para as partes de novo e posterior ao fato.

E assim temos a distinção entre o pensamento de Hart, que concebe a existência de lacunas no direito, a serem preenchidas pela discricionariedade judicial, e o pensamento de Dworkin, para quem mesmo diante dos casos difíceis, existe uma resposta correta dada pelo Direito. A crítica de Dworkin a Hart é que a concepção de poder discricionário judicial é antidemocrática e injusta, já que os juízes não são eleitos, e numa democracia, só os representantes eleitos do povo deveriam ter poderes de criação do Direito.

Por fim, para Dworkin isto seria uma forma de legislação retroativa ou de criação do Direito a posteriori, a qual é, com certeza, considerada de forma geral, como injusta, pois desaponta as expectativas justificadas dos que ao agirem confiaram no princípio de que as conseqüências jurídicas de seus atos seria determinada pelo estado conhecido do Direito estabelecido ao tempo de seus atos.

Para Dworkin, nos casos difíceis, os juízes devem estabelecer suas decisões com base em princípios jurídicos. Normalmente, os casos difíceis são distintos dos demais pelo elevado grau de incerteza quanto ao seu desenlace conclusivo, seja porque se constata a ausência de uma norma pré-existente no ordenamento jurídico que regule aquela situação ou porque, acaso existente, pode parecer inadequada para produzir um resultado satisfatório. Como os princípios jurídicos são mais elásticos e mais abertos, atingem espectros mais amplos de incidência fática e cobrem hipóteses desafiadoras não alcançadas pelo sistema baseado em regras. São linhas mestras que devem nortear a atividade judicante. Juízes não têm assim, nenhuma necessidade de criar Direito novo. Manejando só princípios jurídicos na sua atividade decisória, não atuam como legisladores (criando Direitos) mas tão-somente limitam-se a reconhecer Direitos e obrigações pré-existentes.

O autor sustenta que os casos difíceis têm uma resposta correta, pois se não são aplicáveis as normas, devem ser aplicados os princípios. Assim, só a tese positivista de que o Direito é meramente norma pode manter a tese de discricionariedade judicial. Dworkin entende que diante dos casos difíceis, não é boa solução deixar liberdade ao juiz para julgar, pois não está legitimado nem para ditar normas, muito menos de forma retroativa, se levarmos o sistema de democracia e os Direitos a sério.

Dworkin exige do juiz a busca de critérios e a construção de teorias que justifiquem a decisão. Assim, a concepção do juiz Hércules é de um juiz capaz de solucionar os casos difíceis e encontrar respostas para os problemas. A função judicial é garantidora e não criadora, pelo que não tem poder criador de um Direito discricionariamente.

O modelo de decisão judicial que Dworkin propõe é o da resposta correta, no qual: a) o juiz não é legislador; b) o juiz não tem nem pode ter poder político; c) sua função é garantir os Direitos individuais; d) o juiz decide os casos difíceis com base em princípios, uma tarefa hercúlea, que o faz denominar de "juiz Hércules".

Dessa forma, considerando que há uma pluralidade de fontes normativas, seja de índole constitucional, seja de natureza infra-constitucional, federal (Leis federais n. 10.220/01, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o à atleta profissional, e a lei 10.519/2002, que dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária do animal, quando da realização de rodeio), estadual (as Leis do Estado do Rio de Janeiro n. 3.021/98 que permite a realização de "Vaquejadas" e a Lei estadual 3.714/2007, que veda a apresentação de animais em espetáculos circenses) e municipal (Lei do Município de Duque de Caxias n. 2.004/2006) que autoriza a realização de "Vaquejadas", o modelo proposto por Hart de discricionariedade do juiz não parece ser o melhor a ser aplicado, pelo que privilegio a adoção do modelo de Dworkin, enquadrando a presente lide como um dos "hard cases".

Assim, adotando o modelo proposto por Dworkin, sem o exercício da discricionariedade judicial autorizado por Hart, oriento-me pela busca de "uma conciliação entre os princípios e as normas constitucionais, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, conforme a relevância deles relativamente ao caso concreto. Isso não significa, entretanto, que um dos princípios deva ser excluído do ordenamento jurídico em função de outro, por irremediável contradição entre eles".

Com efeito, o problema é posto no sentido de saber como "resolver-se esta contradição no caso concreto, como é que se vai dar solução ao conflito entre bens, quando ambos (todos) se apresentam efectivamente protegidos como fundamentais".

A primeira preocupação é, consoante observa Liliane Roriz, a de "buscar a compreensão de sua real dimensão, enquadrando-a em uma das diversas modalidades de conflito". No caso do conflito entre a proteção ao meio ambiente e o direito a manifestação cultural e desportiva, estamos diante de um conflito aparente entre dois direitos fundamentais de caráter diverso, em sentido amplo. Temos um direito com dimensão negativa: vedação à crueldade ou submeter animais a maus tratos, e outro com dimensão positiva: proteção às manifestações culturais e desportivas.

Bobbio qualifica as normas em obrigatória (que impõe uma sanção), proibitiva (que impõe uma abstenção), permissiva negativa (que permite que não se pratique uma ação); e, finalmente, permissiva positiva (que permite a prática de uma ação). Destarte, o conflito aparente que temos é entre uma norma proibitiva, que impõe a abstenção de maus tratos e de submeter os animais à crueldade, e a norma permissiva positiva que permite,e, sobretudo incentiva, a manifestação cultural e de práticas desportivas. É um conflito de normas de natureza opostas: uma proíbe e outra permite, e ante tal aparente incompatibilidade, uma deverá prevalecer sobre a outra, em um caso concreto. A esta tentativa de conciliação, os Estatutos da Universidade de Coimbra, desde 1772 denominavam de Terapêutica Jurídica.

Nesta tentativa de resolver o aparente conflito de normas, a primeira tendência que deve ser evitada é a de hierarquizar os direitos . Assim, não há, em abstrato, hierarquia entre disposições constitucionais originárias. Neste sentido, o STF já reconheceu que não há hierarquia entre normas constitucionais originárias, na ADIn 815-3, Rel. Ministro Moreira Alves, DJ de 10/5/96, p. 15.131, cujo acórdão abaixo transcrevo:

Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1º e 2º do artigo 45 da Constituição Federal. - A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras e incompossível com o sistema de Constituição rígida. - Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (artigo 102, "caput"), o que implica dizer que essa jurisdição lhe é atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. - Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação as outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.

Assim, não se poder reconhecer que a proteção aos animais seja hierarquicamente superior à manifestação cultural e desportiva, ou vice-versa.

Nem mesmo a doutrina alemã, que recomenda a transferência de limitações impostas a determinado direito para um outro, insuscetível de restrição, naquilo que denomina de limites imanentes ou limites de não-perturbação (Nichtstörungsscgranken) pode dar a solução adequada ao problema, na medida em que além de não cuidar de eventuais conflitos entre direitos formalmente insuscetíveis de restrição, também termina por reduzir drasticamente o significado das garantias jurídicas desenvolvidas para determinados direitos considerados fundamentais.

Destarte, não se pode considerar a priori que a vedação a maus tratos aos animais possa ser um direito insuscetível de restrição e o direito à manifestação cultural e desportiva seja limitado pela existência dele. Nem vice-versa: isto é, não se pode considerar que o direito à manifestação cultural e desportiva não seja suscetível à restrição, e que a vedação aos maus tratos de animais possa ser limitada por ele.

Deste modo, a técnica da nichtstörungsscgranken não parece ser a mais aconselhável. Por seu turno, uma segunda técnica utilizada pela doutrina alemã, é a cláusula de comunidade (gemeinschafisklausel), que preceitua que devem prevalecer os valores elementares sem os quais a comunidade não poderia subsistir, também não tem aplicação específica ao caso, pois deve-se entender que a proteção dos animais contra os maus tratos, assim como o direito às manifestações culturais e desportivas são valores elementares, ambos, à vida em sociedade. No mais, esta técnica tem sido criticada por ser demasiado vaga.

Uma terceira técnica, que parece ser a defendida pelos dois primeiros réus, é a das leis gerais. Segunda esta técnica, os direitos fundamentais estariam limitados por normas ordinárias imperativas e sujeita os direitos fundamentais a uma reserva de lei. Assim, defendem que além de não haver norma infra-constitucional proibindo as "Vaquejadas", existem as leis federais, estadual e municipal a autorizando. Neste sentido, há a Lei federal n. 10.220/01, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o à atleta profissional, a Lei 10.519/2002, que dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária do animal, quando da realização de rodeio; a Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 3.021/98 que permite a realização de "Vaquejadas" e a Lei do Município de Duque de Caxias n. 2.004/2006) que autoriza a realização de "Vaquejadas". Contudo, esta técnica também não se revela a mais adequada. Primeiro, porque viola a força normativa da Constituição . Segundo, porque transforma em normas de eficácia contida ou limitada aquelas que não parece ter sido a intenção do legislador constitucional originário. Terceiro, porque sujeita todos os direitos fundamentais a uma reserva de lei, invertendo a hierarquia das normas e fazendo regressar ao tempo em que os direitos fundamentais só existiam no quadro das leis ordinárias . Por fim, há, de fato, uma norma limitadora, a saber a Lei estadual 3.714/2007, que veda a apresentação de animais em espetáculos circenses.

A técnica de resolução deste caso difícil, que parece ser a mais adequada, é da ponderação de valores , mais conhecida como nexus theory, ou balancing test, ou teoria da interdependência das normas constitucionais. Esta técnica destina-se a garantir o princípio da unidade da Constituição, e consiste na existência de estreita correlação entre as diversas normas constitucionais, chegando essa interdependência a tal ponto que a simples violação de uma delas, leva, ou pode levar, à violação de outras, e, quando a implementação de uma norma excluir a da outra, o problema deve ser resolvido ponderando-se os valores em aparente conflito, através de uma interpretação sistêmica, sopesando-se, no caso concreto, qual interesse deve merecer a tutela constitucional, aplicando-se o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, sem cair na armadilha da hierarquização pura e simples e sem negar completamente nenhum dos direitos envolvidos na disputa. Nestes mesmos termos, Carlos Roberto Siqueira Castro dispõe que deve sempre estar presente o princípio da responsabilidade social (A constituição Aberta).

A técnica da ponderação de valores impõe que o caso seja solucionado sopesando-se a importância relativa de cada direito ou princípio envolvido, para, por fim, decidir qual deles, naquele caso concreto deve prevalecer ou sofrer menor constrição, em relação a outro. Robert Alexy já preceituava que o problema só pode ser resolvido se se impuser a um dos lados ou aos dois lados envolvidos na questão restrições ou sacrifícios: "a questão reside em saber como isto vai se realizar".

E, para tanto, a doutrina e a jurisprudência tem identificados três etapas: as regras de exclusão, a identificação dos núcleos essenciais e o teste do balanceamento.

Na primeira etapa, busca-se identificar o âmbito de atuação de cada um dos direitos fundamentais em conflitos a fim de se definir se as condutas estão de fato ou não cobertas pelas normas, isto é, se estão incluídas ou excluídas. Se estiverem excluídas, a rigor, o problema está resolvido. Se estiverem incluídas, passa-se à segunda etapa que consiste em identificar o núcleo essencial de proteção de cada um dos direitos fundamentais envolvidos, para que sejam eles preservados, visualizando-se quais os bens jurídicos protegidos e contra que tipo de agressão se outorga esta proteção, e que deve ser realizado em concreto . Por fim, passa-se à ponderação dos valores.

A ponderação de valores é a aplicação do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. Barroso trata ambos como fungíveis, e que consistem em ponderar que o sacrifício imposto a um dos direitos em conflito não seja razoável e proporcionalmente mais intenso que o benefício obtido, isto é, que o sacrifício seja o meio mais adequado e necessário para atingir aquele resultado. Assim, o meio deve ser adequado (a medida é apta a atingir os objetivos pretendidos) e necessário (nenhum meio menos gravoso seria eficaz para atingir os objetivos pretendidos).

Após tais etapas, deve-se reavaliar a decisão tomada, para discutir se o sacrifício de um direito foi justificável; a relação custo/benefício entre o sacrifício e o benefício é adequada ao fim desejado; os núcleos dos direitos foram respeitados; houve razoabilidade entre os fins e os meios.

Neste sentido, o próprio STF ao discutir a questão do aparente conflito entre manifestação cultural e proteção à fauna, na análise da proibição do evento denominado "farra do boi", no RE 153.531, utilizou-se do princípio da razoabilidade, consoante se vê do acórdão abaixo transcrito:

COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE.

A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi".

(STF, RE 153531, Rel. Min. Francisco Rezek, Rel. para acórdão Min.Marco Aurélio, DJ 49, 13/03/98).

Neste acórdão, a Corte evidenciou que não existe uma preferred position do direito à manifestação cultural. Mais ainda, considerou que os maus-tratos aos animais não estava contido no âmbito de proteção da norma que protege as manifestações culturais, não se admitiu a chamada "farra do boi". Portanto, é nítida a posição do Supremo em se orientar pelo método da ponderação de valores, sempre levando em conta os aspectos do caso concreto, distribuindo proporcionalmente os custos do conflito, sem perder de vista o conjunto dos valores protegidos pelo texto constitucional e sem ignorar nenhum deles, pretendendo, assim, alcançar uma maior harmonização. Liliane Roriz conclui que "a busca pelo resultado mais proporcional e mais razoável é, pois, constante. Há de serem distribuídos proporcionalmente os sacrifícios impostos às partes, controlando a relação entre os fins e os meios".

Assim, após ter traçado os contornos da lide, apreciado as preliminares, e após a descrição desta orientação teórica e metodológica de Dworkin e utilizando-me da técnica da ponderação dos valores, analiso o âmbito de proteção constitucional dos direitos dos animais, as leis infraconstitucionais relativas ao evento "Vaquejadas", bem como o posicionamento da jurisprudência, nacional e comparada. Igualmente, analiso o âmbito de proteção constitucional das manifestações culturais e desportivas.

Diagramadas tais questões, passo à análise do caso concreto, a saber, se a realização da "Vaquejada" de Xerém, definida como competição cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra, devendo o boi, mostrar as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, para que os pontos sejam válidos, isto é, uma disputa entre várias duplas, que montados em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa específica para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal, na qual cada vaqueiro tem uma função, um é o batedor de esteira (encarregado de tanger o boi para perto do derrubador, e pegar o rabo do boi e passar para o colega), e o outro é o puxador (é o encarregado de puxar o rabo do boi e de derrubá-lo) constitui ou não maus tratos ou tratamento cruel aos animais envolvidos ou se caracteriza manifestação cultural e desportiva que merece ser continuada. Para tanto, cotejo o laudo pericial judicial, os laudos trazidos pelas partes e outras análises constantes dos autos, bem como as fotos e vídeos juntados pelo autor e pelo réu.

Os direitos dos outros animais: The Snail Darter case

O caso Snail Darter é freqüentemente utilizado como uma primeira referência à proteção dos direitos dos animais. A história pode ser resumida da seguinte forma: foi iniciada a construção de uma represa no Tennessee Valley. Para embargar a construção, que iria alterar a geografia da área, convertendo um rio de fluxo livre em represado, e seriam construídos dutos antiestéticos, alterando negativamente a paisagem para produzir um desnecessário incremento do potencial hidrelétrico, e que já havia sido iniciada, com expressivos gastos públicos, invocaram uma lei de 1973 (The Endangered Species Act) que dava poderes ao Secretário de Interior para designar espécies que poderem ser extintas, pela destruição do habitat considerado crucial para sua sobrevivência, e para os órgãos governamentais adotarem medidas necessárias para garantir a preservação de tais espécies. A construção da represa provocaria a extinção de uma determinada espécie de peixes (snail darter fish). A questão é que os snail darter fishes desempenhavam um papel inexpressivo na cadeia alimentar, pelo que, sua extinção, a rigor, não provocaria um impacto ambiental representativo. Assim, de um lado, tinha-se um suposto dano ambiental inexpressivo em face de um gasto público bastante significativo em virtude da já iniciada (e quase acabada) construção da represa. Não obstante, a Suprema Corte Americana ordenou a suspensão da construção da represa. Ficou assentado que a lei era clara e deveria ser aplicada, apesar dos resultados, no caso concreto, serem insignificantes . Um dos juízes declarou que o legislador teve a clara intenção de outorgar às espécies em extinção um grau maior de proteção mesmo em face de um grande custo para um outro objetivo social, e que seria possível, mesmo que não fosse provável, que os legisladores com esta intenção geral quisessem salvar os snail darter ainda que diante dos excessivos custos da construção da represa quase acabada.

A lição que pode ser extraída deste julgamento, ou ao menos, uma leitura possível do que ficou decidido, é que a proteção aos direitos dos animais não encontra limites nos argumentos de ordem econômico-financeira. Mesmo com os elevados gastos já consumidos, e o estado quase finalizado da construção da represa, ainda assim, foi determinada a proibição da obra para assegurar os direitos dos pequenos peixes.

Os habeas corpus dos Chimpanzés e a extensão dos direitos do homem aos grandes primatas

Perante a Vara Criminal de Salvador foi interposto pelo Promotor de Justiça Heron José de Santan, acompanhado de outros promotores, de professores universitários de Faculdades de Direito e por Associações protetoras de animais, um habeas corpus tendo como paciente a chimpanzé Suíça, que encontrava-se aprisionada no Jardim Zoológico de Salvador, numa jaula com área total de 77,56 m2 e altura de 4,0 metros no solário, e área de confinamento de 2,75 metros de altura, privada, portanto, de seu direito de locomoção.

Na inicial ressaltou-se que os chimpanzés, assim como os humanos, são animais altamente emotivos e quando aprisionados passam a viver em constante situação de estresse, que geralmente os levam a disfunções do instinto sexual, automutilações e a viver em um mundo imaginário, semelhante a um autista. Foram reportados relatos de médicos veterinários, atestando que eles são animais sociais e geneticamente programados para a vida em grupo. Necessitam de ter contato com outros de sua espécie para desenvolverem seus instintos e seus potenciais hereditários, pois na natureza, convivem em grupos, que podem variar até mais de 100, possuindo relações bastante intensas e altamente emocionais. Comunicam-se, constantemente entre si, através de vocalizações, posturas corporais, expressões faciais e contato físico. Demonstram intenso interesse e curiosidade em relação uns aos outros, estando permanentemente atentos a quem está fazendo o quê, onde e com quem. A companhia dos outros chimpazés parece constituir um elemento essencial para o sentimento de segurança individual, para a consolidação de relações, especialmente as de cunho afetivo através do contato corporal.

Segundo o Relatório de Vistoria, teria sido constatada a impropriedade de seu enclausuramento. O argumento utilizado foi a extensão dos Direitos Humanos aos Grandes Primatas, com base no "Projeto Grandes Primatas" (The Great Ape Project). A partir de 1993, um grupo de cientistas começou a defender abertamente a extensão dos direitos humanos para os grandes primatas, dando início ao movimento, liderado pelos professores Peter Singer e Paola Cavalieri, e contando com o apoio de primatólogos como Jane Goodall, etólogos como Richard Dawkins e intelectuais como Edgar Morin:

Este projeto parte do seguinte ponto de vista: humanos e primatas se dividiram em espécies diferentes há mais ou menos 5 ou 6 milhões de anos, com uma parte evoluindo para os atuais chimpanzés e bonobos e outra para os primatas bípedes eretos, dos quais descendem o Homo Australopithecus, o Homo Ardipithecus e o Homo Paranthropus.

Na verdade, o nosso ancestral comum com os chimpanzés e gorilas é muito mais recente do que o ancestral comum entre eles e os primatas Asiáticos (gibões e orangotangos), de modo que biologicamente não pode haver nenhuma categoria natural que inclua os chimpanzés, os gorilas, e exclua a espécie humana.

Em 1984, os biólogos Charles Sibley e Jon Ahlquist aplicaram o método da biologia molecular à taxonomia, realizando um estudo sobre o DNA dos humanos e chimpanzés, bonobos ou chimpanzés pigmeus, gorilas e orangotangos, duas espécies de gibões e sete espécies de macacos do Velho Mundo, chegando ao surpreendente resultado de que os homens e os grandes primatas são mais próximos entre si do que dos macacos.

Na verdade, o gorila se distanciou da nossa família um pouco antes de nos separarmos dos bonobos e chimpanzés, que são nossos parentes mais próximos, da mesma forma que é o homem, e não o gorila, o parente mais próximo dos chimpanzés. Segundo Jared Diamond, a taxonomia tradicional tem reforçado a equivocada visão antropocêntrica que estabelece uma dicotomia fundamental entre o homem os grandes primatas.

Como a diferença genética é um relógio que reflete fielmente o tempo de separação das espécies, Silbley e Ahlquist estimam que os homens divergiram da linha evolucionária dos outros chimpanzés há aproximadamente 6 a 8 milhões de anos atrás, enquanto os gorilas se separaram dos chimpanzés por volta de 9 milhões de anos e os chimpanzés se separaram dos bonobos a apenas 3 milhões. O gênero Homo teria surgido há 2.5 milhões de anos com o trio Homo Habilis, Homo Ergastere e o Homo Rudolfensis. O Homo Erectus há 1.8 milhões de anos, seguido pelo Homo Sapiens e pelo Homo Heidelbergenis, enquanto o Homo Sapiens Sapiens e o Homo Neandertals só vão surgir hum milhão de anos depois.

Segundo Richard Dawkins, se nossa mãe segurar na mão de nossa avó e assim por diante, em menos de quinhentos quilômetros, encontraremos uma ancestral comum com os chimpanzés, e isto em termos evolutivos não é um tempo muito longo.

Seja como for, à medida que o tamanho da estrutura cerebral aumenta, os membros do gênero Homo passam a desenvolver habilidades mais complexas, como a matemática e o uso de linguagens.

É com base neste argumento evolucionista que autores como Singer e Cavalieri entendem que os grandes primatas seriam também titulares de direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade individual e à integridade física, pondo fim a todo tipo de aprisionamento em zoológicos, circos, fazendas ou laboratórios científicos, outorgando-lhes uma capacidade jurídica semelhante a que concedemos aos recém nascidos ou deficientes mentais.

Em que pese o habeas corpus não ter sido apreciado, haja vista o falecimento da Chimpanzé uma semana após a impetração, a inicial traz em seu bojo extenso conteúdo útil para a discussão acerca do conteúdo dos direitos dos animais, ainda que trate especificamente da extensão dos direitos humanos para os grandes primatas.

O principal argumento para a extensão de tais direitos aos grandes primatas é de matriz genética e evolucionista. Na taxonomia tradicional de Linneus, que leva em consideração a importância das diferenças entre as espécies, o homem integraria a família Hominidae, o gênero Homo e a espécie Homo sapiens, enquanto os antropóides, chimpanzés, por exemplo, pertenceriam à família Pongidae, ao gênero Pan e às espécies Pan troglodytes (chimpanzé comum) e Pan paniscus (bonobos).

Desde o fim do século XIX, com a teoria da evolução, o sistema de classificação dos seres vivos tenta refletir a história evolutiva das espécies. Na segunda metade do século XX, surgiu um novo modelo taxonômico denominado cladístico, que passou a classificar os animais com base na similaridade anatômica, levando também em consideração a distância genética e o tempo de separação entre as espécies.

No modelo cladístico, diferentemente da taxonomia tradicional, as inferências sobre a história evolucionária vem antes da classificação e não depois, de modo que existem provas científicas suficientes para afirmar que o homem e os grandes primatas pertencem à mesma família (hominidae) e ao mesmo gênero (Homo).

É narrado naquela petição inicial, que, além de características anatômicas fundamentais, como o peito liso, um particular caminho dos dentes molares, a ausência de rabo, revelam que não faz muito tempo os grandes primatas tiveram um ancestral comum com os homens.

Há institutos que já adotam essa nova taxonomia e, nas últimas edições da publicação Mammals Species of the World, os membros da família dos grandes primatas passaram a integrar a família dos hominídeos, antes integrada apenas pelo homem, de modo que os grandes primatas já são classificados como Homo troglodytes (chimpanzés), Homo paniscus (bonobos) e Homo sapiens (homens) e Homo gorilla (gorilas) .

Ainda sobre a extensão dos direitos humanos aos grandes primatas, outro habeas corpus foi impetrado, tendo como paciente dois Chimpanzés, e encontra-se pendente de julgamento perante o STJ. O proprietário e fiel depositário de dois chimpanzés (Lili e Megh) Rubens Forte recorreu ao STJ contra a decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) que determinou fossem os animais retirados do cativeiro e introduzidos na natureza. Ao julgar o caso, o relator, ministro Castro Meira, da Segunda Turma, disse ser incabível a impetração de habeas-corpus em favor de animais, admitindo a concessão da ordem apenas para seres humanos. Houve, no entanto, Agravo Regimental contra tal decisão, no qual o Ministro Herman Benjamin pediu vistas (HC 96344), ainda pendente de julgamento.

Nesse Habeas Corpus, os impetrantes insurgem-se contra decisão proferida pelo TRF 3ª Região, no âmbito de Agravo de Instrumento da medida cautelar preparatória, que suspendeu a condição de depositário fiel do proprietário, determinando que os animais fossem 'reintroduzidos' à natureza". A ação cautelar tinha por objetivo garantir ao requerente a condição de fiel depositário dos filhotes de Chimpanzés denominados 'LILI' e 'MEGH', até decisão final a ser proferida no processo principal. O IBAMA sustentava que os animais foram trazidos do Zoológico de Fortaleza sem autorização do órgão fiscalizador; que a Nota Fiscal apresentada não permite analisar a origem do animal,não demonstrando sequer se o chimpanzé pertencia efetivamente ao suposto doador, bem como a ausência de registro do animal junto ao IBAMA, não tendo o autor logrado êxito na via administrativa, sendo-lhe negado o registro de mantenedouro de fauna exótica, por considerar o local inapropriado para manutenção dos animais.

Os impetrantes do habeas corpus alegaram que a decisão do TRF 3ª Região partiu de premissa equivocada ao considerar chimpanzés animais da fauna silvestre e, ao determinar sua introdução na natureza, impõe certeza da morte delas; que a vida dos animais, mormente dos Chimpanzés, que possui 99% do DNA Humano, estão acima das leis, requerendo fosse aplicada a equidade.

O que há de comum entre tais habeas corpus é que ambos trazem em seu bojo muito mais do que a proteção dos direitos dos animais à liberdade, pois este direito poderia ser manuseado através de mandado de segurança. O que parece estar em discussão é, sobretudo, sua equiparação, ou ao menos aproximação, com os direitos humanos. Da mesma forma que o homem é titular dos direitos, em ambos os habeas corpus discute-se que os animais também o seriam.

Não obstante ambos os habeas corpus tratem de grandes primatas, e tenham como núcleo do argumento a aproximação genética e evolucionista entre o homem e os chimpanzés, são ações judiciais que acendem a discussão sobre a extensão e a determinação dos direitos dos animais, aproximando-os dos direitos humanos.

O caso Sierra Club vs. Morton

Em 1972, por exemplo, a Suprema Corte dos EUA julgou o famoso caso Sierra Club v. Morton, que pode ser resumido da forma seguinte: a Associação Sierra Club ingressou com uma ação contra a US Forest Service, pedindo a anulação da licença administrativa que autorizava a construção de uma estação de desportos de inverno no Mineral King Valley, um vale da Sierra Californiana bastante conhecido por abrigar várias espécies de sequóias.

Como o Tribunal de Apelação da Califórnia havia indeferido o pedido, por considerar que nenhum membro da associação havia sofrido qualquer prejuízo, Christopher Stone escreveu um ensaio seminal denominado Should Trees have Standing? Toward Legal Rights for Natural Objects, que foi anexado ao processo quando este já se encontrava próximo de ser julgado pela Suprema Corte.

Nesse artigo, Stone apresenta o argumento da continuidade histórica, onde afirma que o Direito tem ampliado cada vez mais sua esfera de proteção: das crianças às mulheres, dos escravos aos negros, até as sociedades comerciais, associações e coletividades públicas, não havendo porque recusar a titularidade de direitos para os animais e plantas, ali representados pela Associação Sierra Club .

Contrariando todas as expectativas, três dos sete juízes da Suprema Corte americana se declararam favoráveis aos argumentos apresentados por Stone, e, embora a tese tenha sido derrotada, o voto do juiz Marshall se tornou antológico, ao afirmar que, da mesma forma que nos EUA um navio ou uma corporação podem ser titulares de direitos, nada impede que a natureza também o seja.

Os direitos dos animais não-humanos

Um dos autores que parece ter uma visão bem clara dessa questão dos direitos dos animais é Cass Sunstein.

O autor parte da constatação de que todos no fundo acreditam que os animais têm direitos, ao menos em um sentido mínimo. A questão que se coloca é sobre o que efetivamente esta expressão. Explorando esta questão, o autor tenta esboçar um sentido claro revelando as possibilidades de seu alcance e significado, e o que poderia ser um conceito razoável de direitos dos animais.

Os aspectos fundamentais que Sunstein atribui ao conceito de direitos dos animais são o sofrimento (suffering) e bem-estar (well-being). Assim, o estatuto de proteção aos animais envolve a proteção contra o sofrimento e a garantia do bem-estar dos animais.

O autor é extremamente crítico a esta posição radical que advoga uma "autonomia" para os animais, tal qual pudemos observar nos dois habeas corpus dos Chimpanzés acima citados, ou que objetam a qualquer controle humano ou uso de animais. Muito embora, reconheça que é graças a esta posição extremista que advém a preocupação e a regulação quanto ao uso de animais em (a) entretenimento; (b) experiências científicas; e (c) na agricultura.

Traçando um panorama da compreensão dos direitos dos animais por diversos autores, Sunstein aponta que Kant entendia os animais como meros instrumentos dos homens, sendo implausível a idéia de direitos dos animais, já que não eram nem racionais nem auto-conscientes.

Bentham, ao contrário, sugeria que o tratamento que a sociedade dava aos animais era tal qual a escravidão e a discriminação racial. Em Bentham que encontramos o início da defesa dos direitos dos animais, dispondo que sofriam da tirania dos humanos. Na comparação com os humanos, Bentham afirmava que, se por um lado, os animais não podiam raciocinar, não podiam falar, mas, por outro lado, podiam sofrer. O sofrimento era o elemento essencial para assegurar que os animais fossem titulares de direitos e que tais direitos devessem ser protegidos e respeitados. Igualmente, Stuart Mill fazia a mesma defesa, embasado na analogia com a escravidão.

Este debate sobre os direitos dos animais é internacional, e observaremos sua matriz constitucional. A Alemanha tornou-se o primeiro país europeu a colocar a garantia dos direitos dos animais em sua Constituição, adicionando as palavras "e animais" ao artigo que obrigava o Estado a respeitar e proteger os direitos humanos .

Mas não é preciso atravessar o Atlântico para observar a garantia constitucional dos direitos da natureza. Na Constituição do Equador, observamos em seu Capítulo sétimo os Derechos de la naturaleza, isto é, a natureza (mãe-natureza ou Pacha Mama) como titular de direitos a que se respeito sua existência. Dispõe seu art. 71 e seguintes:

Art. 71.- La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza La vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y El mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los princípios establecidos en la Constitución, en lo que proceda.

El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema.

Art. 72.- La naturaleza tiene derecho a la restauración. Esta restauración será independiente de la obligación que tienen el Estado y las personas naturales o jurídicas de Indemnizar a los individuos y colectivos que dependan de los sistemas naturales afectados. En los casos de impacto ambiental grave o permanente, incluidos los ocasionados por la explotación de los recursos naturales no renovables, el Estado establecerá los mecanismos más eficaces para alcanzar la restauración, y adoptará las medidas adecuadas para eliminar o mitigar las consecuencias ambientales nocivas.

Por seu turno, no Título VII " Regimen del Buen Vivir, no art. 395 IV, é assegurado o princípio do in dúbio pro meio ambiente, isto é: "En caso de duda sobre el alcance de las disposiciones legales em materia ambiental, éstas se aplicarán en el sentido más favorable a la protección de la naturaleza".

Como não poderia deixar de ser, também a Constituição brasileira, em seu art. 225, § 1º, VII, impõe a todos o dever de respeitar a fauna, proibindo expressamente as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade. Segundo Laerte Levai, essa norma constitucional desvinculou completamente o Direito brasileiro da perspectiva antropocêntrica a favor de uma ética biocêntrica, tornando materialmente inconstitucionais as leis ordinárias que regulam a exploração dos animais em circos, zoológicos e laboratórios.

Logo, as leis que tratam do tema são inconstitucionais, por não se conseguir afastar a submissão dos animais a tratamentos cruéis simplesmente por lei. Não é a mera existência de lei que torna lícita ou ilícita a exploração dos animais. Portanto, as leis já mencionadas acima, seja a Lei Municipal 2004, de 6/11/2006, que autoriza a realização de rodeios e "vaquejadas" no Município de Duque de Caxias, ou a Lei Estadual 3.201/98, que permite a realização de eventos denominados Rodeios e Vaquejadas no Estado do Rio de Janeiro, desde que conte com a presença e fiscalização de um médico veterinário, sejam as leis federais 10.220/2001, que institui normas gerais relativas à atividade de peão de rodeio, equiparando-o à atleta profissional, ou a lei 10.519/2002, que dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária do animal, quando da realização de rodeio, têm a sua constitucionalidade condicionada à apreciação da submissão do animal à crueldade. Portanto, a existência de lei autorizadora da utilização de animais tratando do tema, a rigor, é absolutamente irrelevante, pois o que irá determinar a licitude ou ilicitude da conduta é a constatação da submissão do animal à tratamento cruel.

O mesmo não ocorre com as leis proibitivas da utilização de animais, pois elas alargam a proteção aos mesmos. Veja-se o caso da lei estadual 3.714 de 2007, que veda a apresentação de animais em espetáculos circenses. Apesar de tal lei não poder ser aplicável ao evento "Vaquejada", que não se confunde com espetáculo circense, tem a sua constitucionalidade assegurada por ser medida de alargamento dos direitos dos animais. Assim, as leis proibitivas da utilização de animais sempre serão constitucionais por reforçarem o combate à crueldade, naquilo que Cass Sunstein denominou de enforcing existing rights, ou seja, o reforço aos direitos já existentes dos animais.

Então o que está efetivamente em discussão não pode ser a existência ou ausência de lei autorizando um determinado evento com a presença de animais, mas sim o tipo de tratamento que lhe é dado. E na análise do tipo de tratamento dado devem ser apurados os direitos dos animais. E é esse o sentido do mais incontroverso dos direitos dos animais, analisado por Cass Sunstein: a definição de direitos dos animais em oposição a dano aos animais, isto é, estabelecendo a máxima de que o direito deve prevenir atos de crueldade contra os animais.

Disso decorre o primeiro direito dos animais: a proibição contra o sofrimento, o dano e a morte prematura. Contudo, Cass Sunstein aponta que isso é muito limitado, pois exclui a questão da caça, da utilização dos animais para propósitos médicos ou científicos e sua criação para e uso na alimentação.

Portanto, é necessário ampliar os direitos dos animais para o direito de incrementar o bem estar (well being ou welfare) dos animais, focando onde a lei oferece pequena ou nenhuma proteção, e onde continua a agressão, protegendo os animais contra o sofrimento desnecessário . Deste modo, por direitos dos animais não se pode entender tão-somente a proteção contra o sofrimento (suffering), mas também o bem estar. É neste sentido que falar em direitos dos animais envolve também a promoção do bem estar dos animais, eliminando práticas correntes que limitem sua forma de bem viver.

Esta é uma posição bem razoável de Cass Sunstein: uma posição que não seja tão limitativa, tão restritiva dos direitos dos animais, isto é, que não é limitada meramente à proteção contra o sofrimento, mas também que abarque a promoção do bem estar dos animais, sem chegar a uma posição extremada, sem radicalizar no sentido de defender a autonomia dos animais .

A posição extrema, seria a que prega a autonomia completa e absoluta dos animais, que não poderiam ser submetidos ao uso e controle dos humanos, ou que não possam ser propriedade dos humanos. Na propostas de Cass Sunstein, os animais podem ter os mesmos idênticos direitos dos humanos sem chegar ao extremismo da autonomia ou da vedação da propriedade. O autor compara os animais a crianças: não possuem autonomia, mas têm os mesmos direitos legais que os homens têm, contudo, de forma comedida, conjugada com suas capacidades. Assim, sem ter que recorrer a uma proposta radical de equiparação ficam assegurados aos animais a proteção contra a tortura, e até mesmo contra o batedor, ainda que não gozem de autonomia, isto é, ainda que possam ser propriedade dos humanos . O autor insiste que não se pode considerar os animais como pessoas, mas ainda assim, fazem jus ao direito à dignidade, à proibição da tortura, de se sujeitarem a um batedor, tudo isso dentro do direito do bem viver.

Sua proposta é de conceber os direitos dos animais como um estatuto em que o interesse dos animais seja levado em consideração, e tenha peso, independente dos interesses dos seres humanos. Assim, conclui que, se por um lado é incontroverso que todos acreditam nos direitos doas animais, mesmo os mais críticos, os mais conservadores, praticamente todos apóiam leis contra a crueldade em face dos animais, o importante é estender os direitos para outras áreas: compreender crueldade não somente como sofrimento, mas como privação do bem estar. Neste sentido falar em direitos dos animais, deve ser entendido como proteção contra o sofrimento e promoção do bem estar . Cass Sunstein critica a autonomia dos animais, entendida como considerá-los livres do controle humano. Mas o uso deve ser compatível com o bem estar, o não sofrimento, a vida decente.

Assim é que falar em proibição de sua submissão à tratamento cruel significa proibir o sofrimento e vedar práticas limitativas de seu bem estar, isto é, promover o bem estar do animal, assegurando sua dignidade, seu tratamento digno.

Observe-se que desde Bentham os direitos dos animais vêm no sentido de defendê-los de uma condição de escravidão, de tentar afastar sua caracterização da condição de escravo. Igualmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, que para os constitucionalistas é a base dos direitos fundamentais implica na não sujeição do homem à condição de escravo . Destarte, se a base dos direitos fundamentais dos homens é o princípio da dignidade da pessoa humana , é possível entender que a base dos direitos dos animais deva ser o princípio da dignidade dos animais, o princípio do bem viver, da vida decente dos animais, para além da proibição do sofrimento. Com isso, não se caracteriza os animais como autônomos, como pessoas, mas se aproxima a tutela de seus direitos da tutela dos direitos humanos, cuja base é o princípio da dignidade: para os direitos humanos, o princípio da dignidade da pessoa humana; para os animais, o princípio da existência digna dos animais, do bem viver dos animais, da vida decente dos animais, que não é incompatível com sua falta de autonomia nem como a possibilidade de se falar em propriedade dos animais. Os animais podem estar dentro do controle dos homens, desde que seja compatível com a promoção de seu bem estar, coma vida decente, e com a vedação ao sofrimento, com o respeito e a proteção da integridade física e corporal.

Se um por lado é importante e saudável a discussão sobre o habeas corpus dos grandes primatas, isto é, de considerá-los como pessoas, com a mesma natureza jurídica dos homens, esta identificação não é condição necessária para se assegurar os direitos dos animais próximo aos direitos humanos. Para promover tal aproximação não é necessária a identificação deles com os humanos. Até porque que, tal identificação já teria suas limitações: não se aplicaria aos demais animais, somente aos grandes primatas, isto é, não se aplicaria aos bovinos, tema desta ação civil pública.

Portanto, a proposta mais radical, mais ousada de equiparar os grandes primatas aos humanos, para equiparar os direitos dos animais aos direitos humanos apresenta suas limitações, pelo que, a proposta mais moderada de Cass Sunstein apresenta-se mais razoável: estende-se os direitos dos animais não somente à vedação do sofrimento, mas também à promoção do bem estar (do bem viver), à proibição a qualquer prática limitativa de uma vida decente e digna dos animais.

As ações de proteção dos direitos dos animais

Diversas ações têm sido ajuizadas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL bem como pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, nas quais o Poder Judiciário tem assegurado a proteção dos direitos animais. Como ilustração, têm sido merecido destaque as ações, cujas ementas seguem abaixo:

Maus tratos a animais de circo - Ação cautelar de busca e apreensão - Requerimento da Promotoria da Comarca de Sumaré em favor de um hipopótamo e um chimpanzé vítimas de maus tratos - Instalações inadequadas para os animais - Envio desses bichos para o Parque Ecológico Municipal de Americana (proc. n. 1445/93, 3ª Vara Cível de Sumaré).

Mortandade de peixes - Ação civil pública proposta pela Promotoria de Sorocaba contra indústria local - Redução do oxigênio da água provocada pela diminuição da vazão nas barragens de usina hidrelétrica de responsabilidade da requerida - Indenização pleiteada em vista da conseqüente mortandade de peixes do rio Sorocaba (proc. n. 2110/93, 5a Vara Cível de Sorocaba).

TV Animal - Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra rede emissora de televisão que exibia imagens de maus tratos a animais, dentre as quais luta livre entre caranguejos - A requerida, abstendo-se de fazê-lo passou a veicular campanhas ecológicas - Acordo homologado - (proc. n. 89/00377540/7, da 19a Vara da Justiça Federal).

Abate cruel - Matadouro municipal que vinha abatendo gado a marretadas, método esse vedado por lei em razão do sofrimento imposto ao animal - Ação civil pública proposta na comarca de São Bento do Sapucaí - Municipalidade condenada a adequar o matadouro às especificações modernas e a substituir o sistema arcaico de abate pelo método científico-humanitário (proc. n. 284/92, Comarca de São Bento do Sapucaí).

Apreensão de navio - Inquérito civil instaurado pela Promotoria de São Sebastião contra navio estrangeiro que derramou 20.000 litros de óleo nas águas litorâneas brasileiras, ocasionando sérios riscos à fauna ictiológica - Medida cautelar de Produção Antecipada de Provas para permitir imediato exame pericial na embarcação - Navio retido no porto até a prestação de caução no valor de US$ 10 milhões, para garantir a indenização dos danos ambientais sofridos (proc. n. 429/91, Comarca de São Sebastião).

Fechamento de zoológico - Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público Estadual em favor de 30 animais da fauna silvestre aprisionados em condições cruéis - Estabelecimento particular montado em desconformidade à lei - Ofensa ao decreto n. 24.645/34 - pedido de fechamento do zôo com a reintegração dos bichos, na medida do possível, ao seu habitat natural (proc. n. 218/88, Comarca de Aparecida).

Crueldade em rodeio - Ação civil pública ajuizada pela Promotoria de Cravinhos a fim de impedir rodeio - Festa regional que envolve maus tratos e crueldade - Utilização de instrumentos e métodos que causam sofrimento aos animais - Concedida liminar para que os responsáveis pelo evento abstenham-se de usar sedém, esporas de formato pontiagudo ou cortantes e de sinos no pescoço dos animais, porque se constituem em dolorosos meios de instigação à ira do bicho (proc. n. 937/95, Comarca de Cravinhos).

Passarinhada - Danos ao meio ambiente causados em "churrasco de confraternização" no município de Embu - Captura e matança indevida de aproximadamente 5.000 aves da fauna nacional, incluindo rolinhas, sabiás e ticoticos , assadas em espetos - Ação de Responsabilidade Civil ajuizada pelo Ministério Público - Comprovação efetiva do dano ecológico, que causou o extermínio dos pássaros - Réu condenado a indenizar o Estado (Apelação Cível n. 70.393-1, 5ª Câmara do Tribunal de Justiça).

Matança em canil - Sacrifício de cães apreendidos nas ruas - Utilização de método cruel consistente em choques elétricos de 220 volts após os animais serem molhados - Ação interposta pela Promotoria de Três Corações/MG com o apoio do Sociedade Tricordiana Protetora dos Animais - Termo de ajustamento de conduta aceito pela Municipalidade, que se conscientizou do erro (proc. n. 10216/95, 1ª Vara da Comarca de Três Corações).

Trio elétrico - Ação civil pública, com pedido de liminar, movida pela Promotoria de Justiça da comarca de Porto Seguro/BA, em face da exploração comercial e perversa de animais (jegues) para o divertimento humano - Bloco carnavalesco cujo carro do trio elétrico era puxado, dia e noite, por jumento extasiado - Hipótese típica de abuso em animal de tração (proc. n. 535549/99, Vara Cível da comarca de Porto Seguro).

Crueldade contra animal - Envenenamento de cão - Caracteriza a contravenção do artigo 64 da competente lei, ministrar substância venenosa a animal inofensivo, causando-lhe sofrimento e morte (Julgados do TACrim , 55/126).

Crueldade contra animal - Indivíduos que, a golpes de enxada, quebram a perna de equino, abandonando-o sem socorro - Protege a lei os animais não só por sentimento de piedade como também para educar o espírito humano, a fim de evitar que a prática de atos de crueldade possa transformar os homens em seres insensíveis ao sofrimento alheio, tornando-os também cruéis para com os semelhantes (RT 295/343).

Crueldade contra animal - Morte de gato por queimaduras - Pratica a contravenção do artigo 64 da Lei das Contravenções Penais o agente que, após jogar querosene em um gato, atea-lhe fogo, causando grande sofrimento ao animal (RJD TACrim, 2/74).

Briga de pássaros - A exploração de jogo de azar, sob a forma de 'briga de pássaros', constitui - também - crueldade contra animais (RT 500/339).

Crueldade contra animal - Abate de cachorro a tiros - Pratica ato contrário aos sentimentos de humanidade aquele que provoca sofrimentos desnecessários e injustificáveis a um cão, fisgando-o por intermédio de um anzol para, em seguida, abatê-lo a tiros (RT 176/94).

Crueldade - Caracterização - Para que se configure a hipótese do artigo 64 da Lei das Contravenções Penais não há necessidade da reiteração de atos de crueldade quando se trata de sevícia contra animal, bastando um só ato (RT 591/358).

Crueldade contra animal - Espancamento de égua desobediente - Agente que espanca cruelmente uma égua em face do comportamento anômalo do animal - Utilizando-se de um rebenque, o acusado provocou sérias lesões na cabeça, na barriga e nas ancas do eqüino, causando-lhe grande sofrimento (TACrim, Apelação 941.013-2, Lins).

Briga de galo - A briga de galos, embora para os galistas constitua um esporte, é evidentemente um ato de crueldade para com os animais, isto porque essas aves, quando levadas às rinhas, enfrentam-se em duelo mortal, sangrando-se, cegando-se e brigando até que uma delas caia prostrada ao chão e mortalmente ferida (RT 302/448).

Costume - manifestação cultural - estímulo - razoabilidade - preservação da fauna e da flora - animais - crueldade.

A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi".

(STF, RE 153531, Rel.: Min. Francisco Rezek, Rel. p/ Acórdão: Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998, pp. 13).

São exemplos de ações nas quais os direitos dos animais vêm sendo judicializados e protegidos pelo Poder Judiciário contra atos atentatórios a sua existência digna. Passo agora a analisar o caso concreto objeto desta ação civil pública.

O evento "Vaquejada" em si

O perito judicial, médico veterinário, realizou a perícia durante os dias 7, 8 e 9 de março de 2008 no PARQUE ANA DANTAS, onde foi realizada a "Vaquejada" de Xerém. Em suas respostas aos quesitos, o perito respondeu (fls.1019) que são utilizados dois tipos de animais: os eqüinos e os bovinos.

Quanto aos eqüinos, são utilizados em torno de 280, e estavam hígidos em pleno vigor físico. Com relação aos bovinos, são utilizados durante todo o evento, algo em torno de 350, e que estavam, igualmente, hígidos e em pleno vigor físico.

Em ambos, o perito não verificou nenhum tipo de alteração física ou orgânica nos animais. Os animais estavam calmos, sem nenhum sintoma de estresse como cavando o solo, escoiceando a baia ou a si mesmo (fls. 1020).

Antes do início do evento, os animais ficam em baias individuais de alvenaria, em baias individuais provisórias, em piquetes e em caminhões-baia. As dimensões eram adequadas para o descanso dos animais, sendo bem ventilados, frescos, e com passagem de ar corrente, com ruídos toleráveis (fls. 1021).

O perito classificou, às fls. 1022, o local como adequado, porque atendia a toas as necessidades dos animais, que tinham a sua disposição alimentação, água e área para seu descanso. Verificou que os eqüinos se alimentavam de ração para cavalo atleta e capim picado e feno, além de poderem pastar nos piquetes, bem como era fornecida água. Em relação aos bovinos, os animais estavam sendo alimentados com capim picado e, também, tinham água a sua disposição, alimentos que considerou o perito serem apropriados, pois, atendiam às necessidades de ambos os animais (fls. 1022).

No local do evento, havia dois veterinários, contratados pela organização, cuidando dos animais. Além disso, algumas equipes de "Vaquejada" possuíam veterinários próprios.

O perito relatou que não foi observada a administração de nenhum composto químico que produza algum tipo de alteração do estado físico-psíquico normal dos animais.

Durante o evento, os eqüinos são submetidos às provas de "Vaquejada", provas de apartação e provas de velocidade. Já os bovinos somente são utilizados nas provas de "Vaquejada".

A prova de "Vaquejada" consiste em uma disputa entre várias duplas, que montadas em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa apropriada para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal (fls. 1023). Cada vaqueiro tem uma função: um é o batedor de esteira (encarregado de "tanger" o boi para perto do derrubador, e pegar o rabo do boi e passar para o colega), o outro é o puxador (é o encarregado de puxar o rabo do boi e de derrubá-lo). Os bovinos foram utilizados apenas uma vez, para não beneficiar outros competidores, visto que os animais "viciam", caindo no local pré-determinado mesmo sem a atuação do cavaleiro, segundo informações da organização do evento (fls. 1024).

Os cavalos estão expostos a enfermidades normais a sua atividade, como enfermidades ósteo-tendinosos e musculares, enquanto que os bovinos estão expostos, basicamente, à fratura das vértebras coccígeas distais (fls. 1024). O perito esclareceu em audiência, cuja assentada segue às fls. 1314, que a possibilidade é de fratura da cauda dos bovinos pelo manuseio do animal para derrubá-lo, mas que é normal que apresentem fratura na cauda antes mesmo das provas na "Vaquejada", e que, clinicamente, a fratura da cauda não é considerada algo estranho, e que a intensidade da fratura não gera prejuízo ao animal, eis que, segundo perito, a quantidade de medula espinhal na área fraturada é insignificante.

Nos dias 8 e 9 de março de 2008 foram realizadas as provas de "Vaquejada". Após o evento, o perito relatou (fls. 1026) que os animais se apresentavam sem nenhuma alteração física ou psíquica, não tendo sido verificado nenhum ferimento nos animais que participaram das atividades no dia 8, nem apresentavam sintomas de estresse. Após as atividades, os animais retornam as suas respectivas baias, piquetes e caminhões-baia para descanso e alimentação. O perito descreveu que os locais possuíam dimensões adequadas para o descanso dos animais, sendo bem ventilados, frescos e com passagem de ar corrente, com ruídos toleráveis, sendo o local considerado apropriado por atender às necessidades dos animais (fls. 1026-1027).

Caso os animais necessitassem atendimento médico-veterinário, a equipe do evento estava preparada para tal, e não houve no dia 8 nenhum atendimento de emergência nem morte de nenhum animal (fls. 1027). As mesmas condições foram encontradas no dia seguinte, sendo a única diferença que no dia 9 houve um atendimento, pois um eqüino se feriu durante a Prova de Vaquejada, sendo prontamente transferido para o Hospital Veterinário onde foi operado, e, segundo relatou, encontra-se bem em seu haras de origem (fls. 1029). Em audiência, cuja assentada encontra-se às fls. 1314, esclareceu que o ferimento do eqüino foi superficial, por conta de uma queda do bovino próximo do eqüino.

O perito descreveu o estado de saúde dos animais como excelente (fls. 1030), sendo alimentados regularmente e tendo a sua disposição água. Os bovinos utilizados eram adultos e saudáveis (fls. 1029).

Concluiu o perito que as instalações eram adequadas, pois havia baias individuais de alvenaria e provisórias, e currais de chegadas de bovinos e curral para separação de animais lesionados após as provas, sendo os locais cercados para evitar danos aos animais, que são fortes e saudáveis e bem cuidados pelos proprietários (fls. 1030-1031). No mesmo sentido, atestam o veterinário e o engenheiro florestal dos dois primeiros réus, no laudo de fls. 1257-1258.

O perito aduziu que as pistas onde se realizam os eventos de "Vaquejada" eram forradas com areia adequada (fls. 1032). Contudo, na exibição do vídeo pode-se ver que o evento de "Vaquejada" é realizado mesmo com chuva.

Diante do que é exposto pelo laudo (na quesitação apresentada por FEEMA às fls. 1253-1254, os quesitos relevantes já foram respondidos adequadamente pelo perito, e os demais ou são jurídicos ou não se relacionam com a perícia veterinária), dá-se conta que os animais até são bem tratados para o evento. Disso não parece haver a menor dúvida. É feito um grande preparo e grande investimento, com os devidos cuidados para os animais. Mas a questão não é somente acerca dos cuidados ministrados aos animais. A questão a ser analisada é do evento em si, no que ele consiste e em suas conseqüências.

Consoante é descrito no laudo pericial, o evento "Vaquejada" consiste em uma disputa entre várias duplas, que montadas em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa apropriada para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal (fls. 1023).

Assim, vê-se, inicialmente, que o objetivo da prova é derrubar o bovino, provocar queda do bovino dentro de uma determinada faixa.

Cada vaqueiro tem uma função: um é o batedor de esteira, a quem compete aproximar o boi do derrubador, e pegar o rabo do boi. Depois, deve passar o rabo do boi para o outro vaqueiro da sua dupla. Este deve puxar o rabo do boi. E então, derrubar o boi.

Por outro lado, observa-se que os bovinos são utilizados apenas uma vez, não em virtude de seu bem estar, mas sim para não beneficiar outros competidores, visto que os animais "viciam", caindo no local pré-determinado mesmo sem a atuação do cavaleiro (fls. 1024).

São estes os aspectos que devem ser considerados na análise da "Vaquejada". É que tal evento consiste, repita-se, em (1) derrubar o bovino, provocar sua queda dentro de uma determinada faixa; (2) para tanto, um vaqueiro o aproxima do outro; (3) pega em seu rabo: (4) passa para o outro vaqueiro, que pega em seu rabo; (5) puxa o rabo do bovino; (6) provoca a queda do bovino; (7) fazer com que o bovino caia mostrando as quatro patas.

Este objetivo de derrubar o bovino, que deve cair com as quatro patas para o alto, fora do chão, puxados pelo rabo, é de fato degradante para o animal. Não se pode considerar como não sendo cruel um evento cujo objetivo é derrubar um animal, fazer com que ele caia mostrando as quatro patas para o alto, fora do chão. Além disso, é puxando o seu rabo que isso deve acontecer. Puxar o rabo do animal é submetê-lo a tratamento degradante, cruel, violando o seu bem estar.

Por seu turno, estão expostos ao risco de fratura das vértebras coccígeas distais (fls. 1024), além de outros danos. Em que pese nos dois dias do evento não se ter observado nenhum acidente, fato é que o direito ambiental é também baseado no princípio da precaução e da prevenção. Por seu turno, não obstante o perito ter afirmado em audiência (fls. 1314), que a possibilidade de fratura da cauda dos bovinos pelo manuseio do animal para derrubá-lo, sendo normal que apresentem fratura na cauda antes mesmo das provas na "Vaquejada", isto não ser considerado algo estranho, e que a intensidade da fratura não gera prejuízo ao animal, eis que, segundo perito, a quantidade de medula espinhal na área fraturada é insignificante, tal conclusão não merece ser considerada como absoluta ou inequívoca. Os documentos de fls. 1051-1068, assinado outros médicos veterinários de fls. 1069-1075, dão conta dos riscos das lesões no momento em que o passador apreende a cauda do boi e no momento em que é puxada pelo derrubador. Vê-se da manifestação de fls. 1056-1060, que no momento inicial, o animal encontra-se correndo em velocidade, na tentativa de escapar da perseguição a que se acha submetido. Quando é puxada a cauda, ocorre um hiper-estiramento da cauda, de anatomia frágil e que está sujeita a uma série de lesões. Tais lesões podem incluir desde sub-luxação, luxação, lesão dos discos inter-vertebrais, fratura única ou múltipla das vértebras cocígeas ou caudais, derrame sanguíneo subcutâneo, que nem sempre é percebido por ser contido pela pele (fls. 1056), somente se tornando visível quando a cauda é arrancada de sua inserção no tronco do animal, como ocorreu com o boi Inspetor, segundo o relato de Evandro Araújo Branco, em seu livro Vaquejadas do Passado (página 119) . Mas fato é que sempre pode se constatar a existência de hematomas no local. No mais, as lesões da cauda também podem incluir a ruptura de ligamentos que unem as vértebras coccígeas ou caudais entre si, o que se desdobra em sub-luxação e luxação de vértebras caudais, ruptura de ligamentos, do disco inter-vertebral, de estruturas nervosas, o que faz ser acompanhado de muita dor, e, repita-se, a ruptura dos vasos sanguíneos (fls. 1057-1058). Isto é atestado por 127 (cento e vinte e sete) médicos veterinários (fls. 1069-1075).

Em virtude da queda, do forte impacto do animal ao solo, outras lesões podem ocorrer como fraturas, luxações, entorses em diferentes segmentos ósseos (fls. 1059). Fraturas de costelas também poderão ocorrer, sendo que em muitos casos poderá ocorrer a perfuração dos pulmões. Nesse caso, relatam os médicos veterinários que "há prejuízo para a função respiratória, podendo-se observar diferentes graus de insuficiência respiratória e mesmo asfixia, com diminuição da capacidade de oxigenação dos tecidos orgânicos, ou colabamento do pulmão, pode haver contusão pulmonar, hemorragia, pneumotórax, e, conseqüentemente perda da capacidade respiratória, podendo o animal vir a óbito. A musculatura e os tecidos cutâneos e subcutâneos de todo corpo do animal também podem ser lesados com contusões, formação de hematomas, estiramentos e ruptura de suas estruturas musculares e tendíneas. Poderão também ocorrer ruptura de órgãos diversos como fígado, baço, rúmen, omaso, abomaso, bexiga, rins devido ao forte impacto ao solo, bem como hemorragias de grau variados, que poderão levar o animal à óbito em tempo variável após a prova dependendo da extensão do sangramento. Ao cair no animal no solo e sendo arrastado, mesmo que por instantes, a pele da cabeça, do pescoço, da parede lateral do tronco e dos membros pode sofrer lesões diversas como escoriações por todo corpo do animal, equimoses, hematomas, queimaduras (por atrito), solução de continuidade e perda de tecido. No episódio da queda, se o animal bater com face lateral da cabeça, contra o solo, pode haver lesão do nervo facial, que inerva a musculatura da face, do que resulta paresia (paralisia parcial) ou paralisia temporária ou definitiva dessa musculatura. Também o choque violento do animal, na queda em cúbito lateral pode determinar ocorrência de avulsão do plexo braquial e/ou paralisia do nervo radial, ou seja, esgarçamento dos membros que emergem da medula espinhal para enervar os membros com conseqüente paresia e paralisia, particularmente da musculatura extensora da extremidade dos membros. Essa paralisia, resultante de avulsão, de modo geral é definitiva . " (fls. 1059).

Assim, do que se verifica, a queda do bovino pode, resumindo, acarretar para o animal as seguintes lesões, relativamente aos órgãos abaixo (fls. 1059-1060):

Pele e tecido subcutâneo: equimoses, hematomas, queimaduras (por atrito), solução de continuidade e perda de tecido;

Coluna vertebral: sub-luxação, luxação e fratura de vértebras, com lesões conseqüentes da medula espinhal e de raízes dos nervos espinais, síndrome de Wobbller e síndrome da cauda eqüina;

Tórax: fratura de costelas, contusão pulmonar, ruptura da parede do tórax com ocorrência de pneumo-tórax, colabamento dos pulmões e conseqüente perda da capacidade respiratória;

Musculatura do tronco e membros: miopatia de captura (processo inflamatório dos músculos pelo estresse da captura), que pode ocorrer até duas semanas após o evento, ruptura de ligamentos, tendões e de estruturas musculares;

Inervação da cabeça e dos membros: paralisia do nervo facial, avulsão do plexo braquial e/ou paralisia do nervo radial;

Membros: sub-luxação e luxação de peças articulares, fraturas de segmentos ósseos, paresia ou paralisia resultante da avulsão do plexo braquial e/ou lesão do nervo radial;

Cauda: hiperestiramento, compressão, deslocamento, luxação, fratura única ou múltipla das vértebras caudais, cocígeas, deslocamento, estiramento, ruptura ou arrancamento da cauda pelo excesso de força em um único ponto;

Pele: derrame sanguíneo subcutâneo, pela ruptura de vasos, com formação de hematomas, lesão nas áreas de contato direto da pele com o solo, no momento do decúbito, com derrames, equimoses e hematomas;

Órgãos internos " ruptura do fígado, baço, bexiga, diferentes estômagos e rins, com conseqüente hemorragia interna.

Derrubar um bovino pelo rabo consiste em tratamento cruel, e impõe sofrimento e privação do bem estar do animal, submetendo-o a tratamento degradante. Além dos vídeos acostados aos autos, as fotos de fls. 158 e 173 do jornal O Dia ilustram o que ocorre no evento.

O direito ao desporto e à manifestação cultural

Em sua contestação de fls. 374-375 os dois primeiros réus descrevem o evento "Vaquejada" como "uma manifestação popular, muito típica nos estados das regiões norte e nordeste do Brasil, tendo sido incorporado desde a colonização aos costumes nacionais, os quais eram realizados comumente nas caravanas ou comitivas que deslocavam os bovinos para outras localidades, sempre no objetivo da procura de melhores pastos".

Os dois primeiros réus prosseguem, ainda, aduzindo que "na busca de divulgar culturalmente esta atividade tão bem recepcionada por outros estados da federação, procuram tão-somente o desenvolvimento de práticas já incorporadas aos costumes, e não apenas, a satisfação de prazeres comezinhos, como quer fazer parecer o autor".

Vê-se, portanto, que o evento "Vaquejada" em Xerém, não é, nem nunca foi uma tradição local. O PARQUE ANA DANTAS instalou-se no local 20 anos antes do ajuizamento da ação, portanto, por volta de 1985. Estava na 22ª Vaquejada no ano de 2005, sendo que são realizadas duas "Vaquejadas" por ano, uma em março e outra em agosto, do que se conclui que tal evento se iniciou no ano de 1994.

Destarte, não pode ser entendido como uma tradição popular do local. A lei Municipal n. 2004, de Duque de Caxias, que reconhece a "Vaquejada" de Xerém como atividade cultural e desportiva foi publicada em 6 de novembro de 2006, pelo que, inexiste qualquer cunho de manifestação tradicional na mesma.

Portanto não pode ser entendida como um evento que deita suas raízes na cultura local. Ainda que se considere como evento meramente desportivo, sua finalidade é lucrativa. Funciona com atividade econômica (ainda que desportiva) atrativa para o PARQUE.

O uso econômico do animal e a chamada finalidade recreativa da fauna, tem por limitação o princípio geral da atividade econômica previsto no art. 170, VI, da CF, que prega a observância da ética em toda atividade que envolver a exploração da natureza e dos animais.

Desenvolver uma atividade desportiva consistente em derrubar um animal, puxando-o pelo rabo, e fazendo com que caia com as quatro patas para fora do chão, para o alto, viola o princípio da ética no tratamento com o animal.

Nestes termos, o STF já analisou o caso da farra do boi, em Santa Catarina e observou que o evento, enquanto manifestação cultural, envolvia submissão dos animais a tratamento cruel, vedando sua prática, consoante se observa do acórdão abaixo transcrito:

COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMULO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE.

A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi".

(STF, RE 153531, Rel.: Min. Francisco Rezek, Rel. p/ Acórdão: Min. Marco Aurélio, 2ª Turma, julgado em 03/06/1997, DJ 13-03-1998, pp. 13 EMENT VOL-01902-02 PP-00388)

Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio consignou que: "Se, de um lado, como ressaltou o eminente Ministro Maurício Corrêa, a Constituição Federal revela competir ao Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando, incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais " e a Constituição Federal é um grande todo, de outro lado, no Capítulo VI, sob o título "Do meio Ambiente", inciso VII do art. 225, temos uma proibição, um dever atribuído ao Estado", e prossegue:

E o Ministro Néri da Silveira despertou para o aspecto de que o disposto no art. 215 da Constituição da República que assegura as manifestações culturais, deve ser igualmente conjugado com o art. 3º da Constituição. Neste sentido, sublinhou o Ministro:

E sobre essa questão de manifestações culturais envolvendo bovinos, o Ministro Francisco Rezek deu uma clara lição:

Por seu turno, mesmo enquanto manifestação cultural, iremos observar que a utilização do gado, dos bovinos, em eventos desportivos era decorrente do fato dos animais viverem soltos (Fls. 1298). É que como não havia cercas no sertão nordestino, os animais eram marcados e soltos na mata. Depois de certo tempo, os coronéis reuniam os vaqueiros (peões) para juntar o gado marcado, no que se chamava de pega de gado. Os vaqueiros se embrenhavam na mata, perseguiam, laçavam e traziam os bois para os coronéis. Como o gado se procriava na mata, muitos filhotes eram selvagens, por nunca terem mantido contato com seres humanos, sendo os mais difíceis de ser capturado. Destarte, tal atividade de captura envolvia valentia e habilidade, surgindo, a partir daí, a realização das disputas como além de manifestação cultural, evento desportivo.

O Rio Grande do Norte é apontado como o Estado da federação que deu o primeiro passo para a prática da "Vaquejada". Por volta de 1810, embora ainda não existisse a "Vaquejada", já se tinha notícia de uma prática parecida, consistente na derrubada de vara de ferrão, praticada em Portugal e na Espanha, onde o vaqueiro utilizava uma vara para pegar o boi. Mas a prática de derrubar o boi pelo rabo é uma prática que não foi importada dos países ibéricos. É que em Seridó, região do Rio Grande do Norte, era impossível o uso da vara, pois o campo era muito acidentado e a mata muito fechada, e, por essa razão, o boi era derrubado pelo rabo (fls. 1298).

O primeiro registro sobre a realização da "Vaquejada" foi em 1874, quando José de Alencar escreve a respeito da "puxada de rabo de boi" no Ceará, mas não como sendo algo novo, deixando claro que a prática era anterior.

Assim, a "Vaquejada" vem como evento popular, desportivo e manifestação cultural da região do nordeste (Rio Grande do Norte e Ceará principalmente), em virtude da necessidade de manter o gado junto, que era criado solto, e por ser impossível o uso da vara de ferrão, praticada em Portugal e Espanha.

Destarte, seu aspecto de manifestação cultural e esporte popular é na região nordeste, não em Duque de Caxias, tanto que a mais famosa é a de Orós, no Ceará (fls.1301). Em síntese, sua caracterização como manifestação cultural e prática desportiva é frágil, por não ser típica da região de Xerém, onde é realizada.

Diante de tudo o que foi exposto, em apertada síntese:

Identificando que o ponto controvertido da lide é a relação entre a proteção dos direitos dos outros animais e a proteção às manifestações culturais e desportivas;

Adotando a matriz teórica e metodológica de Dworkin, caracterizando a presente lide como um dos "casos difíceis" a que o autor faz menção;

Rejeitando a idéia de discricionariedade judicial proposta por Hart;

Adotando o modelo de decisão judicial proposto por Dworkin, que objetiva identificar a resposta correta na qual o juiz não é legislador, não tem poder político, sua função é de garantir os direitos fundamentais sejam humanos sejam dos outros animais, e que a decisão nos casos difíceis é de identificar os princípios, as normas, a jurisprudência, os fatos concretos, e tudo o que consta do sistema jurídico;

Utilizando a técnica de resolução de conflito aparente de normas constitucionais mediante a ponderação de valores, ou terapêutica jurídica;

Sem proceder a qualquer hierarquização dos direitos em abstrato;

Compreendendo a real dimensão da proteção dos direitos dos [outros] animais, e da proteção às manifestações culturais e desportivas, e seu âmbito real de atuação;

Identificando os núcleos essenciais de cada um destes direitos;

Procedendo ao teste do balanceamento entre ambos;

Levando em consideração que a proteção dos direitos dos animais não encontra limites no argumento de ordem econômico-financeira, como a geração de renda e emprego nos eventos de "Vaquejadas", tal qual apontado no snail darter case;

Tendo em vista que a jurisprudência começa a acender o debate de extensão dos direitos humanos para os demais animais, como no caso dos grandes primatas;

Que os animais são titulares de direitos;

Que um conceito razoável de direitos dos animais compreende não só a proibição de sofrimento mas abarca também a promoção do bem estar, nos termos propostos por Cass Sunstein;

Que a norma constitucional que veda a submissão dos animais à crueldade deve ser entendida não só como violação da agressão física ou proteção à integridade corporal mas também como promoção do bem viver dos animais e da dignidade de sua condição;

Que o reconhecimento de tais direitos não implica em outorga de autonomia aos animais, proibindo que sejam propriedade dos humanos, mas sim em compatibilizar seu uso à promoção de seu bem estar, de seu bem viver, proibindo qualquer prática limitativa de uma vida decente;

Que no sentido proposto por Bentham e Stuart Mill, o tratamento dado aos animais não pode ser análogo à escravidão;

Que a existência de leis autorizadoras da utilização de animais em eventos desportivos, como as Leis federais 10.220/01 e 10.519/02, Lei do Estado do Rio de Janeiro nº. 3.201/98 e Lei do Município de Duque de Caxias nº. 2004/06, não garante sua constitucionalidade, devendo ser apurada, na prática, a forma de tratamento dispensada ao animal;

Somente leis que disponham sobre alargamento dos direitos dos animais têm sua constitucionalidade assegurada de plano, tal qual ocorre com a Lei do Estado do Rio de Janeiro nº. 3.714/07, que proíbe a apresentação de animais em espetáculos circenses;

Um dos direitos dos animais é a prevenção de danos;

Ainda que não se considerem os animais como pessoas, fazem jus à proteção de sua dignidade e proibição de tortura;

Crueldade contra os animais deve ser entendida como privação de seu bem estar, devendo ser protegida sua existência digna;

Diversas ações de proteção dos direitos dos animais têm sido ajuizadas pelo Ministério Público Federal e Estadual, nas quais o Poder Judiciário tem vedado práticas atentatórias à dignidade dos animais;

Os relatos do perito consistem, tão-somente, em observações de um profissional dando conta de que os animais no PARQUE ANA DANTAS são até bem tratados, sendo realizado grandes investimentos e gastos para o evento, com extremos cuidados sendo dispensados aos eqüinos e bovinos;

Contudo as conclusões não podem ser tidas como absolutas ou inequívocas a sustentar a continuidade da realização do evento;

Tendo em vista que a "Vaquejada" consiste em uma disputa entre várias duplas, que, montadas em seus cavalos, tentam derrubar um bovino, provocar sua queda;

Que para o bovino ser derrubado, o vaqueiro deve puxar seu rabo;

Que o boi deve cair com as quatro patas para fora do solo, para o alto;

Que a utilização do boi apenas uma vez não peara sua proteção, mas para não beneficiar os outros competidores, pois o boi fica viciado em cair no mesmo lugar;

Que tal ato é degradante para o animal e viola seu bem estar;

Que em virtude da queda o boi está exposto a diversos riscos de danos e lesões, descritos às fls. 1059-1060 por 127 (cento e vinte e sete) médicos veterinários;

Que embora na data da perícia não tenha sido verificado nenhum acidente com os bovinos, o direito ambiental é baseado nos princípios da precaução e da prevenção;

Considerando que a manifestação cultural e desportiva não é absoluta, nos termos do já decidido pelo STF no RE 153.531;

Tendo em vista que a exploração de atividades econômicas encontra seu limite na ética nos termos do art. 170 VI da CR88;

Caracteriza manifestação cultural a atividade que deite suas raízes no tempo, consoante assentou o então Ministro do STF, Maurício Corrêa, no julgamento do RE 153.531;

Que a "Vaquejada" de Xerém não pode ser considerada genuinamente como uma manifestação popular ou desportiva típica, na medida em que foi iniciada somente por volta do ano de 1994, e foi importada da região Nordeste do País, especialmente do Ceará e do Rio Grande do Norte, estados onde tal evento tem raízes muito mais fortes, profundas e expressivas;

Na análise da proteção das manifestações culturais deve-se ter em mente que a cultura pressupõe o desenvolvimento que contribua para realização da dignidade da pessoa humana e da cidadania, e para a constituição de uma sociedade livre, justa e solidária nos termos do art. 3º da CR 88, consoante votou o então Ministro do STF, Nélson Néri no julgamento do RE 153.531;

Manifestações culturais envolvendo bois derrubados e puxados pelo rabo constituem-se como atos cruéis, por submeterem os animais à humilhação, e tratamento degradante;

A utilização de bovinos em eventos desportivos e como manifestação cultural era decorrente do fato dos animais viverem soltos, o que não se observa atualmente, e que então eram juntados pelos vaqueiros que se embrenhavam nas matas, perseguiam, laçavam e traziam os bois;

Que tais eventos eram decorrentes de demonstração de valentia e habilidade dos vaqueiros na pega do gado, o que atualmente não se verifica por ser desnecessário;

A prática de derrubar bovinos pelo rabo é decorrente de não haver anteriormente no Rio Grande do Norte a Vara de ferrão, e sua impossibilidade de uso por ser o campo muito acidentado e a mata fechada, atividade que não é mais contemporânea;

Diante de tudo o que foi exposto, merece ser julgado procedente o pedido para que os dois primeiros réus se abstenham de promover a prática denominada por "Vaquejada", competição que consiste na derrubada do boi na qual o vaqueiro deve puxar seu rabo.

As responsabilidades dos réus

A atividade denominada "Vaquejada" é realizada pelos réus PARQUE ANA DANTAS e JONATAS, pelo que, devem se abster de realizá-las, bem como outros eventos do mesmo porte, que se constituam em competições cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra, devendo o boi deve, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, disputas entre várias duplas, que montadas em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa específica para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal, na qual cada vaqueiro tem uma função, um é o batedor de esteira (encarregado de tanger o boi para perto do derrubador, e pegar o rabo do boi e passar para o colega), e o outro é o puxador (encarregado de puxar o rabo do boi e de derrubá-lo), ou similares, bem como outros eventos do mesmo porte, assim como outras similares.

No tocante à FEEMA e ao IBAMA, não há que se falar em perda do objeto. Ambos devem ser condenados na obrigação de fazer, consistente na fiscalização das atividades do PARQUE ANA DANTAS, mediante tomada de todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e de seu entorno, observando-se que, no exercício do poder de polícia administrativo de que estão legalmente investidos não devem autorizar "vaquejadas", tais quais descritas acima, nem nenhuma outra atividade que implique submissão de animais a crueldade.

A condenação em danos morais coletivos

No tocante ao dano moral, o STF manifestou "o entendimento no sentido de que, para o cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se desviar de princípios que norteiam a Administração Pública, sendo dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inciso LI do art. 5° da Constituição Federal, norma esta que abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o cultural e o histórico." (RE nº 170.768/SP, ReI. Min. Ilmar Galvão, DJ de 13.08.1999). Com efeito, o Supremo entende que a ação popular é mecanismo para defesa do patrimônio moral.

Do mesmo modo, o art. 1º da Lei da ação civil pública (lei nº 7.347/85) menciona que suas determinações têm como finalidade a reparação aos danos morais e materiais. De fato, a ação civil pública, a exemplo da ação popular, objetiva a proteção do patrimônio moral. Destarte, entendo ser cabível a condenação em indenização por dano moral coletivo.

Nesse sentido, a doutrina de Carlos Alberto Bittar Filho ressalta que "vem a teoria da responsabilidade civil dando passos decisivos rumo a uma coerente e indispensável coletivização. Substituindo, em seu centro, o conceito de ato ilícito pelo de dano injusto, tem ampliado seu raio de incidência, conquistando novos e importantes campos, dentro de um contexto de renovação global por que passa toda a ciência do Direito, cansada de vetustas concepções e teorias. É nesse processo de ampliação de seus horizontes que a responsabilidade civil encampa o dano moral coletivo, aumentando as perspectivas de criação e consolidação da uma ordem jurídica mais justa e eficaz."

Adotando posição semelhante, José Rubens Morato Leite afirma que "o dano extrapatrimonial coletivo não tem mais como embasamento a dor sofrida pela pessoa física, mas sim valores que afetam negativamente a coletividade, como é o caso da lesão imaterial ambiental. Assim, evidenciou-se, neste trabalho, que a dor, em sua acepção coletiva, é um valor equiparado ao sentido moral individual, posto que ligado a um bem ambiental, indivisível de interesse comum, solidário e ligado a um direito fundamental de toda coletividade. Revele-se que não é qualquer dano que pode ser caracterizado como dano extrapatrimonial, e sim o dano significativo, que ultrapassa o limite de tolerabilidade e que deverá ser examinado, em cada caso concreto. As dificuldades de avaliação do quantum debeatur do dano extrapatrimonial são imensas; contudo, este há de ser indenizado sob pena de falta de eficácia do sistema normativo. Portanto, compete ao Poder Judiciário importante tarefa de transplantar, para a prática, a satisfação do dano extrapatrimonial ambiental. Abrindo-se espaço para o ressarcimento ao dano extrapatrimonial, amplia-se a possibilidade de imputação ao degradador ambiental."

Aqueles que não aceitam a condenação em dano moral coletivo, sustentam que o fato do dano moral ser qualificado pela noção de dor e sofrimento psíquico, e a transindividualidade, evidenciada pela indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa objeto de reparação, conduz à não indenizabilidade do dano moral coletivo, salvo comprovação de efetivo prejuízo.

Contudo, no caso em tela, temos a comprovação de prejuízo tanto efetivo (exposição dos animais a serem puxados pelo rabo, caindo com as quatro patas para cima, fora do solo) quanto potencial (danos a sua saúde, descritos às fls.1059-1060).

Além disso, a transindividualidade, no caso em questão, não é indeterminável, na medida em que são afetados os bovinos que participam das "vaquejadas".

Os réus PARQUE ANA DANTAS e JONATAS são os principais beneficiários do evento. A motivação vem do lucro obtido com a realização das "vaquejadas". Assim, diante do caráter pedagógico da condenação e ante os lucros que os mesmos auferem, devem somente estes dois réus serem condenados a pagar a indenização por danos morais, que ora fixo em R$2.000.000,00 (dois milhões de reais).

Por outro lado, é importante reconhecer que os animais não encontram-se subnutridos, possuem estrutura adequada. À exceção da puxada de seu rabo e sua derrubada, na realização do evento "Vaquejada", os animais são comumente bem tratados. Ademais, o PARQUE realiza a atividade de equoterapia e reabilitação para crianças com necessidades especiais (fls. 950-975), projeto social de grande relevância, pelo que, a indenização por danos morais merece ser reduzida pela metade, fixando-a no valor final de R$1.000.000,00 (um milhão de reais).

A antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional

Inicialmente, deve-se observar que os dois primeiros réus descumpriram a decisão de fls. 555 que determinava a obrigação de comunicar o juízo, com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias, a realização de qualquer evento no PARQUE ANA DANTAS, sob pena de multa diária de R$10.000,00 (dez mil reais). Levando-se em consideração que será realizado nos próximos dias 15 e 16 de agosto a "Vaquejada" de Xerém, consoante se extrai do anúncio, obtido do site www.parqueanadantas.com.br

sem que os dois primeiros réus tenham comunicado o juízo do evento, cumpre fixar a multa de R$450.000,00 (quatrocentos e cinqüenta mil reais) (45 dias de descumprimento x R$10.000,00).

No tocante a antecipação dos efeitos da tutela, entendo estarem presentes os requisitos que autorizem seu deferimento. Em cognição exauriente, restou patente o dever dos dois primeiros réus em se absterem de realizar a atividade denominada "Vaquejada". Considerando o periculum in mora para os animais bovinos, deve a mesma ser concedida para seu cumprimento antes do trânsito em julgado.

Ocorre que, como visto acima, o evento já é para o próximo fim de semana. Nestes termos, já está organizado, sendo plausível crer que público expressivo já tenha adquirido os ingressos (observa-se no anúncio a modalidade de venda antecipada), pelo que não parece ser razoável impedir o evento a ser realizado nos dias 15 e 16 de agosto, ante sua proximidade, em virtude do dano maior que a proibição causaria, gerando enorme embaraço e incerteza.

Até porque, por sucessivas vezes, o juízo não deferiu a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional sempre que o evento estava muito próximo. Foi assim na decisão de fls. 202-204 (de agosto de 2005), que mesmo em sede de agravo, o Tribunal não a reformou (fls. 363-365); igualmente na decisão de fls. 312-315 (proferida em março de 2006); assim como também foi indeferido na decisão de fls. 534-536 (referente ao evento realizado em março de 2007). Neste sentido, operou-se a estabilização da relação processual, tanto que não foi renovado o pedido para este próximo evento.

Deste modo, considerando que a discussão já perdura quatro anos, e que em todas as vezes que a suspensão da modalidade desportiva foi requerida, veio a ser indeferida, não parece ser razoável deferi-la para o evento que se realiza daqui a três dias. Efetuando uma modulação temporal dos efeitos da antecipação da tutela jurisdicional, entendo que deva ser concedida, mas salvaguardando-se a realização do próximo evento que ocorrerá nos dias 15 e 16 de agosto, em virtude dos danos e prejuízos maiores que seriam causados com sua imediata suspensão.

Assim, ANTECIPO OS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL para determinar o cumprimento da obrigação de não fazer a contar de 17 de agosto de 2009, devendo no tocante ao evento a ser realizado nos dias 15 e 16 de agosto serem tomadas todas as medidas, providências e cautelas necessárias já determinadas pelo juízo às fls. fls. 202-204, fls. 312-315 e fls. 534-536.

3. DISPOSITIVO.

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE O PEDIDO, com resolução de mérito, nos termos do art. 269 I do CPC, para:

CONDENAR PARQUE ANA DANTAS e JONATAS DE OLIVEIRA DANTAS FILHO a se absterem de realizar as atividades denominadas "vaquejadas" assim entendidas como competições cujo objetivo é derrubar o boi no local demarcado na arena por duas faixas, que estão a 10 metros uma da outra, devendo o boi cair, mostrando as quatro patas, e levantar-se dentro deste limite para "valer o boi", ou seja, disputas entre várias duplas, que montadas em seus cavalos tentam derrubar um bovino na faixa específica para a queda, com dez metros de largura, desenhadas na areia da pista com cal, na qual cada vaqueiro tem uma função, um é o batedor de esteira (encarregado de tanger o boi para perto do derrubador, e pegar o rabo do boi e passar para o colega), e o outro é o puxador (encarregado de puxar o rabo do boi e de derrubá-lo), ou similares, bem como outros eventos do mesmo porte;

CONDENAR FEEMA e IBAMA na obrigação de fazer, no tocante à fiscalização das atividades do PARQUE ANA DANTAS, mediante tomada de todas as providências cabíveis para a proteção da Reserva Biológica do Tinguá e de seu entorno, observando-se que, no exercício do poder de polícia administrativo de que estão legalmente investidos não devem autorizar "vaquejadas" nem nenhuma outra atividade que implique submissão de animais a crueldade; e

CONDENAR PARQUE ANA DANTAS e JONATAS DE OLIVEIRA DANTAS FILHOA no pagamento de indenização por danos morais coletivos, solidariamente, no montante de R$1.000.000,00 (um milhão de reais), monetariamente corrigidos pela Tabela de Precatórios da Justiça Federal, fazendo incidir juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, tudo a contar da data desta sentença até seu efetivo pagamento, sendo tal valor destinado em prol da Reserva Biológica do Tinguá.

ANTECIPO OS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL PARA DETERMINAR O CUMPRIMENTO DE TAL CONDENAÇÃO NA OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER E DE FAZER IMEDIATAMENTE APÓS 17 DE AGOSTO DE 2009, sob pena de fixação de multa de R$100.000,00 (cem mil reais), por dia de descumprimento da ordem judicial, sem prejuízo das demais sanções cíveis, penais e administrativas cabíveis.

No tocante ao evento a ser realizado nos dias 15 e 16 de agosto devem tomadas todas as medidas, providências e cautelas necessárias, já determinadas pelo juízo às fls. fls. 202-204, fls. 312-315 e fls. 534-536. Fixo multa de R$450.000,00 (quatrocentos e cinqüenta mil reais), a ser arcada solidariamente pelos dois primeiros réus, em virtude do descumprimento da decisão de fls. 555, em face da realização do evento dos dias 15 e 16 de agosto de 2009 sem a prévia comunicação ao juízo.

Em virtude da realização das demais atividades permitidas no local, a adequação sonora, a eventual revegetação, recomposição da mata ciliar e da área do talude, se necessárias, deverão ser determinadas e fiscalizadas pela FEEMA e pelo IBAMA, devendo todos assegurar a incolumidade da fauna e da flora da Reserva Biológica do Tinguá.

Sem condenação em custas e honorários advocatícios, a teor da interpretação a contrario senso do art.17 e 18 da Lei 7.347/85.

P.R.I.

São João de Meriti, 12 de agosto de 2009.

VLADIMIR SANTOS VITOVSKY
Juiz Federal Titular
5a Vara Federal de São João de Meriti



JURID - Vara do RJ proíbe vaquejadas [14/09/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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