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quinta-feira, 24 de setembro de 2009

JURID - Apelação criminal. Tráfico privilegiado. [24/09/09] - Jurisprudência


Apelação criminal. Tráfico privilegiado. Substituição da reprimenda por restritiva de direitos. Possibilidade.


Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJMG.

Número do processo: 1.0647.08.091233-8/001(1)

Relator: ADILSON LAMOUNIER

Relator do Acórdão: ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO

Data do Julgamento: 25/08/2009

Data da Publicação: 08/09/2009

Inteiro Teor:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO PRIVILEGIADO - SUBSTITUIÇÃO DA REPRIMENDA POR RESTRITIVA DE DIREITOS - POSSIBILIDADE - TRÁFICO PRIVILEGIADO - REGIME DE CUMPRIMENTO DA PENA - REGIME ABERTO. I - Apesar da proibição contida no art. 33, § 4º da Lei 11.343/06, é possível a substituição da pena por restrição de direitos, considerando que a vedação imposta configura tratamento genérico violador do princípio constitucional da proporcionalidade. II - A aplicação do §4º, do art. 33, da nova lei de droga, traz à baila a figura do tráfico privilegiado, que não está elencado no rol dos crimes hediondos ou a eles equiparados, de modo que não se estabelece como regra a fixação do regime fechado para o início do cumprimento da pena. (Des. Alexandre Victor de Carvalho)

DIREITO PENAL - TRÁFICO DE DROGAS. PROVA SEGURA DA AUTORIA. CONDENAÇÃO MANTIDA - NAMORADA QUE ARMAZENA DROGA PARA ENTREGAR AO NAMORADO, NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AMEAÇA DE TÉRMINO DE NAMORO QUE NÃO CARACTERIZA COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL - APLICAÇÃO DAS PENAS. MULTA. ART. 11, PARTE FINAL, DO CÓDIGO PENAL - REGIME PRISIONAL FECHADO. ART. 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/1990 - GRATUIDADE DE JUSTIÇA. DECLARAÇÃO DE NECESSIDADE. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DE VERACIDADE. I - Forte e seguro o conjunto probatório, a revelar a prática do crime de tráfico de drogas pelos réus, impõe-se confirmar sua condenação empreendida em primeira instância. II - A namorada que armazena drogas para entregá-las ao namorado, no interior de estabelecimento prisional, não pode alegar, como coação moral irresistível a excluir sua culpabilidade, a ameaça daquele em terminar o relacionamento afetivo. Somente o mal efetivamente grave tem o condão de caracterizar tal coação. III - Desprezam-se, nas penas de multa, as frações monetárias, a teor do disposto na parte final do art. 11 do Código Penal. IV - Os condenados por crime de tráfico de drogas devem iniciar o cumprimento de sua pena de prisão no regime fechado (art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/1990). V - A parte que se declara necessitada da gratuidade de justiça faz jus ao benefício, por força de presunção juris tantum de veracidade de tal declaração. (Des. Adilson Lamounier)TRÁFICO DE DROGAS - PRIVILÉGIO - REGIME ABERTO - POSSIBILIDADE - CONCESSÃO DO SURSIS - NECESSIDADE.(Desª Maria Celeste Porto).

APELAÇÃO CRIMINAL N° 1.0647.08.091233-8/001 - COMARCA DE SÃO SEBASTIÃO DO PARAÍSO - 1º APELANTE(S): RAQUEL APARECIDA FÉLIX - 2º APELANTE(S): MAICON SILVA DOS SANTOS - APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADO MINAS GERAIS - RELATOR: EXMO. SR. DES. ADILSON LAMOUNIER

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a 5ª CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, EM NEGAR PROVIMENTO AO SEGUNDO RECURSO, À UNANIMIDADE. DAR PROVIMENTO PARCIAL AO PRIMEIRO, NOS TERMOS DO VOTO MÉDIO DO DESEMBARGADOR REVISOR.

Belo Horizonte, 25 de agosto de 2009.

DES. ADILSON LAMOUNIER - Relator vencido parcialmente.

NOTAS TAQUIGRÁFICAS

O SR. DES. ADILSON LAMOUNIER:

VOTO

Trata-se de duas apelações criminais, a primeira interposta por Raquel Aparecida Félix e a segunda por Maicon Silva dos Santos, contra a sentença (f. 141-155 e 159-161) por meio da qual a MMª Juíza de Direito da Vara Criminal da comarca de São Sebastião do Paraíso julgou parcialmente procedente a denúncia oferecida em face dos recorrentes, condenando-os, respectivamente, a 1 (um) ano e 8 (oito) meses de reclusão, a serem cumpridos, inicialmente, no regime fechado, bem como ao pagamento de 167 (cento e sessenta e sete) dias-multa, pela prática do crime previsto no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006; e a 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de reclusão, a serem cumpridos, inicialmente, também, no regime mais gravoso, e a 666 (seiscentos e sessenta e seis) dias-multa, pela prática do delito previsto no caput do art. 33 c/c 40, III, todos da Lei nº 11.343/2006.

Razões do primeiro recurso, interposto por Raquel Aparecida Félix, às f. 174-179. Reitera sua Defesa a alegação de que a acusada teria sido moralmente coagida pelo segundo apelante, o qual teria enviado à residência daquela, contra sua vontade, a droga apreendida no dia 12 de agosto de 2008, não agindo ela, assim, com "dolo em praticar o crime" (f. 178). Pede, ainda, na eventualidade de ser mantida sua condenação, o estabelecimento de regime prisional mais brando para o cumprimento de sua pena privativa de liberdade, requerendo, por fim, a isenção do pagamento das custas processuais.

As razões do segundo recurso, interposto por Maicon Silva dos Anjos, encontram-se às f. 169-171. Em síntese, alega sua Defesa que ele, em momento algum, praticou a conduta que lhe está sendo imputada e que não há provas que legitimem sua condenação.

Contra-razões às f. 180-185, pelo desprovimento de ambos os recursos.

Parecer da Procuradoria-Geral de Justiça às f. 194-196, também "pelo desprovimento de ambos os apelos" (f. 196).

Conheço das apelações, posto que presentes os seus respectivos pressupostos de admissibilidade, e analiso-as conjuntamente, dada a sua conectividade.

As razões recursais não merecem amparo. A autoria do tráfico, por ambos os denunciados, é induvidosa.

Conforme se infere dos autos, a primeira apelante confessou, nas duas oportunidades em que foi ouvida (f. 10-13 e 125-127), que o segundo recorrente lhe enviara a droga apreendida em sua residência, a qual se destinava a ele, no interior do estabelecimento prisional em que se encontrava.

Com efeito, ainda, os policiais militares Edson Carlos Oliveira de Deus e Emerson Alves presenciaram várias ligações efetuadas por Maicon a Raquel, no dia da prisão em flagrante desta última, conforme se infere de seus depoimentos às f. 06-07, 130-131, 08-10 e 132-133.

O primeiro dos policiais citados afirmou, em juízo, que "o telefone de Raquel, quando ele [Maicon] ligava aparecia o nome dele e os pais informaram que ele estava ligando insistentemente porque ela teria que levar a droga no outro dia" (f. 130).

Emerson Alves, por sua vez, declarou que no momento em que realizavam a diligência na casa de Raquel, o telefone dela "tocou várias vezes e apresentado a ela o telefone, disse que quem estava ligando era Maicon" (f. 132).

Edson Donizete Nunes, outra testemunha ouvida, afirmou à autoridade policial que presenciou a apreensão das drogas, declarando que viu parte delas acondicionadas no interior dos sabonetes encontrados com Raquel e "que foi informado pelos policiais que os sabonetes iriam para a Cadeia Pública local, fato confirmado pela autora Raquel perante o depoente" (f. 49 - depoimento confirmado em juízo, à f. 134 - grifo nosso).

Também uma amiga da acusada, Simone de Lima Souza, confirmou que Maicon ligava para Raquel, pedindo-lhe que levasse droga para ele no interior do estabelecimento prisional (f. 136-137), de todo o conjunto probatório se inferindo, cristalinamente, a autoria dos réus na empreitada criminosa narrada na denúncia.

Quanto à coação moral suscitada pela Defesa da acusada Raquel, como bem assentado na sentença, não obsta sua condenação, por não se enquadrar na hipótese de coação irresistível.

Como ensina CEZAR ROBERTO BITENCOURT, "a irresistibilidade da coação deve ser medida pela gravidade do mal ameaçado. Essa gravidade deve relacionar-se com a natureza do mal e, evidentemente, com o poder do coator em produzi-lo. (...) Somente o mal efetivamente grave e iminente tem o condão de caracterizar a coação irresistível prevista no art. 22 do CP." (Tratado de Direito Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Vol. I. p. 359-360).

Ora, ameaça de término de namoro não é, como bem disse a juíza a qua, ameaça de um mal grave, não afastando, assim, a exigibilidade de conduta diversa daquela praticada pela acusada Raquel.

Recebendo a droga enviada pelo segundo apelante e armazenando-a em sua residência, com efeito, a acusada praticou o crime previsto no caput do art. 33 da Lei nº 11.343/2006, não havendo que se falar em ausência de dolo de sua parte, eis que agiu com consciência e vontade de realizar os elementos constitutivos do respectivo tipo penal.

Quanto à não-apreensão de qualquer aparelho celular em poder do segundo recorrente, não obsta, de igual maneira, a sua condenação, porque não induz à conclusão necessária de que ele não tinha em seu poder um tal telefone no dia 12 de agosto de 2008, não elidindo esta ausência, com efeito, todo o conjunto probatório mencionado, o qual revela que Maicon pedia a Raquel que levasse droga para ele, no interior do estabelecimento prisional em que se encontrava e que Raquel o auxiliava, tendo aquele enviado a esta toda a droga apreendida, descrita no laudo de f. 50.

As penas foram bem dosadas, impondo-se apenas um ligeiro acerto quanto à multa cominada à primeira apelante, qual seja, a sua redução para 166 (cento e sessenta e seis) dias-multa, em observância ao disposto na parte final do art. 11 do Código Penal, o que empreendo autorizado pela ampla devolutividade do primeiro recurso, ainda que não tenha sido expressamente requerido pela respectiva Defesa.

O regime inicial para o cumprimento das penas privativas de liberdade foi bem estabelecido, eis que, a teor do disposto no art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/1990, devem os condenados por tráfico de drogas iniciarem-no no regime fechado.

Por fim, isento a primeira apelante do pagamento das custas processuais, ante sua declaração de necessitada.

Por todo o exposto, NEGO PROVIMENTO À SEGUNDA APELAÇÃO e DOU PARCIAL PROVIMENTO À PRIMEIRA para reduzir para 166 (cento e sessenta e seis) os dias-multa cominados à acusada Raquel Aparecida Félix e isentá-la do pagamento das custas processuais, as quais serão arcadas, em 50% (cinqüenta por cento), pelo segundo apelante.

Não vislumbro, na hipótese, fundamentos fáticos que legitimem a custódia cautelar da primeira apelante, razão por que, cumprindo o que determina o parágrafo único do art. 387 do Código de Processo Penal, determino a sua imediata soltura, se por al não estiver presa.

Expeça-se o alvará.

O SR. DES. ALEXANDRE VICTOR DE CARVALHO:

VOTO

Consigno, inicialmente, que me coloco de acordo com o Eminente Relator quanto ao improvimento do segundo apelo, bem como parcial provimento ao primeiro.

Entretanto, peço-lhe vênia para de seu voto discordar em alguns pontos, no tocante ao mérito.

Tenho mantido posicionamento de que a figura do tráfico privilegiado, criado pela Lei 11.343/2006, tal como o homicídio privilegiado, por exemplo, não é crime equiparado a hediondo, não se aplicando a ele a restrição da Lei 8.072/90 (necessidade de fixação do regime fechado). Nesse sentido:

"A figura mais controversa, a nosso ver, será a do art. 33, §4º, que prevê a figura do "tráfico de drogas privilegiado", fixando uma causa de diminuição de pena de 1/6 a 2/3, quando o agente for primário e de bons antecedentes e não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa.

Utilizamos aqui o mesmo raciocínio fixado pela jurisprudência, quanto ao crime de homicídio qualificado-privilegiado não ser considerado crime hediondo. Embora o homicídio qualificado seja crime hediondo, a presença da figura do privilégio não foi prevista no art. 1º, I, da Lei nº 8.072/90.

Este argumento fundado nos precedentes do STJ e STF, que já nos parece convincente o suficiente, é reforçado pela sistematização da norma e da restrição carreada no próprio dispositivo: 'vedada a conversão em pena restritivas de direitos'.

Como podemos aferir do art. 44, a conduta afeita ao caput e §1º, do art. 33, da Lei 11.343/06 já está sob vedação da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, além de submeter-se a uma série de outras restrições (sursis, anistia, graça, indulto, fiança, livramento condicional com apenas 2/3 e vedação absoluta em caso de reincidência específica)."(CONSIDERAÇÕES SOBRE ALGUMAS INOVAÇÕES TÍPICAS DA LEI Nº 11.343/06 por Leonardo Luiz de Figueiredo Costa - Procurador da República)".

Vê-se, portanto, que o privilégio não se harmoniza com a hediondez. São conceitos incompatíveis, antagônicos. Não se pode ter por repugnante, asqueroso, nojento, um tipo derivado benéfico, cuja estrutura indica um crime menor, mais brando, merecedor de tratamento penal benigno.

O denominado tráfico privilegiado merece resposta penal menos gravosa exatamente porque considera-se que o agente se envolveu ocasionalmente com esta espécie delitiva, não é reincidente, não ostenta maus antecedentes, não se vincula a qualquer organização criminosa e não faz da prática de crimes, em especial de crimes contra a saúde pública, seu meio de vida, não está a usufruir, costumeiramente, dos lucros desta atividade ilícita.

À semelhança do que ocorre com o homicídio qualificado-privilegiado, o legislador, no âmbito da Lei 8.072/90, não elencou o tráfico privilegiado como crime similar ao hediondo, inexistindo motivo razoável para que o primeiro delito não seja crime hediondo e o segundo tenha tal configuração, porquanto a natureza de ambos é idêntica.

É de ser lembrado velho brocardo jurídico-penal segundo o qual onde existe a mesma razão de decidir deve ser gerada a mesma solução.

Outro argumento para se afastar a natureza de hediondez do crime de tráfico privilegiado é que malgrado a Constituição Federal impeça a graça e a Lei 11.343/06 imponha óbice ao indulto em relação ao tráfico ilícito de entorpecentes, na qualidade de delito equiparado ao hediondo, o Presidente da República, por meio do Decreto 6.706, de 22/12/2008, concedeu indulto, sob determinadas condições, a condenados pelo crime do artigo 33, § 4º, da Lei Antidrogas, reforçando a tese de que o tráfico privilegiado encontra-se completamente fora do elenco dos delitos hediondos e a estes equiparados.

Assim, não possuindo o delito de tráfico privilegiado a pecha da hediondez, impedir a substituição de pena neste caso é equiparar, neste aspecto, um crime não hediondo a um de natureza hedionda, situação ofensiva ao princípio da proporcionalidade, cuja observação é fundamental para uma correta interpretação das normas penais.

Como afirmam Luiz Flávio Gomes, Antônio García-Pablo de Molina e Alice Bianchini, "o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade ou da proibição de excesso é princípio geral do Direito. É válido, assim, para todas as áreas: penal, processual penal, administrativo etc... Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade rejeita o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em sentido abstrato) bem como a imposição de penas (proporcionalidade em sentido concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido, contemplado este em seu significado global. O princípio da proporcionalidade, como se vê, conta também com um duplo significado: (a) político-criminal e (b) interpretativo e dogmático. Seus destinatários, portanto, são: o Poder Legislativo (que há de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito), o intérprete e o Poder Judiciário (as penas que os juízes imponham ao autor do delito devem ser proporcionais à sua concreta gravidade)" (ob. cit., p. 553).

Extrai-se da lição supra caber ao Poder Judiciário, quando da imposição da pena, atentar para o princípio da proibição de excesso, decotando da legislação infraconstitucional as partes desproporcionais, ofensivas à idéia de razoabilidade.

Observando tal princípio, que decorre da Constituição Federal, verifica-se ser desproporcional, desarrazoado equiparar, em relação à proibição da substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, o crime de tráfico ilícito de drogas como de natureza hedionda ao delito de tráfico privilegiado.

A solução que apresento tem raiz no princípio da proporcionalidade que, por sua vez, está pautado no princípio da igualdade, consagrado no art. 5º da Constituição da República de 1988 - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)". A equiparação hedionda citada acima ofende a concepção atual de igualdade, a valorativa, sintetizada no tratamento igualitário para os iguais e tratamento desigual para os que se desigualam, de modo justificado e razoável.

A aplicação da vedação prevista em lei infraconstitucional é um resultado possível a partir de uma visão positivista clássica da função jurisdicional. O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito desafia uma releitura do papel do julgador que passa de mero aplicador da lei, numa cega sujeição, a guardião dos direitos fundamentais, entre eles a igualdade e a proporcionalidade.

Assevera Lênio Luiz Streck que: "o advento do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito proporcionou uma verdadeira revolução copernicana no campo da interpretação do direito. A afirmação da importância do contramajoritarismo, instrumentalizado por uma jurisdição constitucional mais interventiva, coloca freios significativos na liberdade de conformação do legislador. O conteúdo fortemente dirigente e compromissório dos textos constitucionais estabelece um novo modo de aferir a constitucionalidade das leis. Já não se trata de examinar a formalidade dos atos normativos. Trata-se, agora, de examinar a conformidade das leis a partir de sua materialidade. Esse relevante fenômeno deve ser examinado no contexto de uma alteração fundamental no papel do direito e do Estado. Na verdade, o que ocorreu foi uma revolução copernicana no campo do direito público. A própria Constituição será, agora, fonte de direito, prescindindo, por vezes, da interposição legislativa. O direito público - instrumentalizado a partir de uma Constituição principiológica - passa a atuar como capilarizador das relações jurídico-políticas da sociedade. (...)

O novo paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito - e conseqüentemente o papel diretivo do texto constitucional compreendido na sua materialidade - acarreta, a toda evidência, compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação e aplicação das leis. Não há espaço legiferante fora da Constituição. Logo, em assim sendo, continuo a insistir (e acreditar) que todas as normas da Constituição têm eficácia, e até mesmo as assim denominadas normas "programáticas" - como as que estabelecem a busca da igualdade, a redução da pobreza, a proteção da dignidade, etc. - comandam a atividade do legislador (inclusive e logicamente, do legislador penal), buscando alcançar o objetivo do constituinte. Esse comando (ordem de legislar) traz implícita - por exemplo, no campo do direito penal - a necessária hierarquização que deve ser feita na distribuição dos crimes e das penas, razão pela qual o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas. Em outras palavras, não há liberdade absoluta de conformação legislativa nem mesmo em matéria penal, ainda que a lei venha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, consubstanciado na garantia de proibição de excesso. Não há, repito, qualquer blindagem que "proteja" a norma penal do controle de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc.)." (Streck, Lenio Luiz. Constituição e Bem Jurídico: a ação penal nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor - o sentido Hermenêutico-Constitucional do art. 225 do CP. Revista Juristas, João Pessoa, a. III, n. 92, 19/09/2006. Disponível em: http://www.juristas.com.br/modrevistas.asp?ic=1311).

O princípio da proporcionalidade corresponde, como já destacado, às exigências do princípio da igualdade (Luzon Pena, Curso de Derecho Penal: parte general, p. 85 e 86). Todavia, é certo que se relaciona com outros princípios, sendo que a doutrina majoritária aponta sua natureza constitucional a partir da dignidade humana, já que "só a pena proporcional à gravidade do fato é humana e respeitosa com a dignidade da pessoa". O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o princípio da proporcionalidade "tem fundamento constitucional na medida em que representa o aspecto substancial do devido processo legal, que vem expressamente contemplado no art. 5º. LIV, da CF", especificamente no espectro do devido processo legal substantivo que informa a limitada criação de regras jurídicas limitadas pela justeza (Gomes, Luiz Flávio (Coord). Direito Penal, volume 1: introdução e princípios fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 554).

Considerando que o comando da proporcionalidade remete o intérprete a "um juízo lógico ou de ponderação que compara, valorativamente, a gravidade do fato antijurídico e a gravidade da pena" (op. cit., p. 555), e, ainda, considerando que seus destinatários são o legislador (cominação legal proporcional - sentido abstrato) e o julgador (imposição de pena proporcional - sentido concreto), reconheço a possibilidade de, no tráfico privilegiado, haver o afastamento da pena privativa de liberdade, substituída por pena restritiva de direitos.

Para ilustrar o que foi aqui defendido, tomo o seguinte exemplo: àquele que cumpre o papel de "mula" ou "aviãozinho" poderá ser imposta uma pena de um ano e oito meses de reclusão, grau mínimo. A vedação da substituição impõe o tratamento penal mais gravoso, o cárcere. Se a conduta imputada fosse a do porte ilegal de arma (pena mínima de dois anos de reclusão), a substituição da pena privativa de liberdade seria admitida. Qual razão fundamentaria a distinção? Ambas as condutas contém uma lesividade atinente à coletividade e têm como objeto material "produtos" vigorosamente relacionados à criminalidade, armas e drogas.

Assim, não há qualquer ofensa ao disposto na Lei 8.072/90 e ao artigo 44 da Lei 11.343/06 ao se estipular o regime inicial de cumprimento de pena como aberto e ao ser substituída a pena prisional por penas restritivas de direitos.

Destarte, substituo a pena privativa de liberdade aplicada à primeira apelante por duas restritivas de direitos, a saber: prestação de serviços comunitários e prestação pecuniária no valor de um salário mínimo, a ser destinada à entidade indicada pelo Juízo de Execuções Penais.

Isso posto, pedindo vênia do Eminente Relator, dou provimento parcial à primeira apelação aviada, porém de forma mais ampla, e substituo a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito, assim como altero o regime inicial de cumprimento da pena do fechado para o aberto. E nego, assim como procedido no voto condutor, provimento ao segundo apelo.

Custas, ex lege.

É como voto.

A SRª. DESª. MARIA CELESTE PORTO:

VOTO

Primeiramente, coloco-me de acordo com o culto Desembargador Relator em todos os termos do seu laborioso voto, adotando os seus judiciosos fundamentos.

Porém, com a devida vênia, entendo que deva ser feita mais uma alteração na r. sentença primeva, qual seja, o abrandamento do regime prisional da acusada Raquel Aparecida Félix bem como deva ser concedida a ela o benefício do sursis.

No caso do tráfico (art. 33 da Lei 11343/06), a redução de pena prevista no § 4º da citada lei traz algumas condições para isso: ser o réu primário e portador de bons antecedentes, e não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Muito embora outrora tivesse entendimento de que o tráfico privilegiado era crime hediondo e o regime deveria ser realmente o fechado, melhor examinando a matéria, alterei meu entendimento, e tenho que o regime prisional a ser fixado ao tráfico privilegiado deva seguir os ditames do art. 33 do CP, vez que, tal como o homicídio privilegiado, não pode o mesmo ser considerado crime hediondo.

Lado outro, verifica-se que o § 4º do art.33 da Lei 11.343/06 vedou apenas a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, não fazendo nenhuma referência ao sursis, senão vejamos:

§4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

Tendo em vista que na hipótese versada nos autos, a reprimenda da apelante restou fixada em 01 (um) e 08 (oito) meses de reclusão e 166 (cento e sessenta e seis) dias-multa, concedo à recorrente os benefícios do sursis.

Assim, pela quantidade da pena e a primariedade da ré, fixo o regime aberto para cumprimento de sua pena bem como concedo a ela os benefícios do sursis.

Desta forma, acompanho o voto condutor proferido pelo culto Desembargador Relator, divergindo para abrandar o regime de cumprimento de pena da apelante Raquel para o aberto e para conceder-lhe o sursis.

É como voto.

SÚMULA: NEGARAM PROVIMENTO AO SEGUNDO RECURSO, À UNANIMIDADE. DERAM PROVIMENTO PARCIAL AO PRIMEIRO, NOS TERMOS DO VOTO MÉDIO DO DESEMBARGADOR REVISOR.




JURID - Apelação criminal. Tráfico privilegiado. [24/09/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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