Anúncios


terça-feira, 15 de setembro de 2009

JURID - Apelação criminal. Sentença condenatória. Homicídio culposo. [15/09/09] - Jurisprudência


Apelação criminal. Sentença condenatória. Homicídio culposo. Apelante médica. Morte de criança. Leucemia aguda.
Obras jurídicas digitalizadas, por um preço menor que as obras impressas. Acesse e conheça as vantagens de ter uma Biblioteca Digital!


Tribunal de Justiça do Mato Grosso - TJMT

CLASSE CNJ - 417 - COMARCA DE BARRA DO GARÇAS

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO

APELADO: CLÁUDIA MARIA SOARES

Número do Protocolo: 6010/2009

Data de Julgamento: 1º-9-2009

EMENTA

APELAÇÃO CRIMINAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. HOMICÍDIO CULPOSO. APELANTE MÉDICA. MORTE DE CRIANÇA. LEUCEMIA AGUDA. FALTA DE DETECÇÃO E CULPA STRICTO SENSU. CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. CONDUTA CULPOSA DUVIDOSA. IN DUBIO PRO REO. RECURSO PROVIDO. ABSOLVIÇÃO DECRETADA.

O fato constitutivo de acusação deve estar robustamente demonstrado quanto a sua realidade. A prova que assim não a qualifica, permitindo pertinência da tese defensiva, traduz a incerteza que obriga a declaração do non liquet com a consequente absolvição do imputado.

RELATÓRIO

EXMO. SR. DES. RUI RAMOS RIBEIRO

Egrégia Câmara:

Cláudia Maria Soares, qualificada nos autos da ação penal nº 171/2002, que tramitou pela 2ª Vara Criminal da Comarca de Barra do Garças/MT, não se conformando com a sentença condenatória de fls. 498 a 509, que lhe impôs pena privativa de liberdade de 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses de detenção, em regime aberto, substituída por duas restritivas de direitos, por infringência ao disposto no artigo 121, §§ 3º e 4º do Código Penal, interpôs o presente recurso de apelação criminal.

Segundo a denúncia, a recorrente teria incorrido em imperícia ao não diagnosticar a leucemia, doença que vitimou o menor V. F. B., mesmo observando a vítima por vários dias, conhecedora de seu quadro clínico e na posse do resultado dos hemogramas realizados, definindo o problema como "psicológico". E que, apesar dos sintomas apresentados e do resultado do hemograma que sugerir a leucemia, teria de forma negligente deixado de solicitar exame específico (mielograma) para o diagnóstico da doença (fls. 02 a 08).

Em suas razões, Cláudia Maria Soares acentua o teor de depoimentos técnicos e científicos acostados aos autos que demonstrariam ser a leucemia de difícil diagnóstico até mesmo para médicos especialistas, e que nos exames solicitados pela apelante não havia como ser detectada a doença, afirmando que no período em que a criança esteve sob seus cuidados ainda não havia apresentado características sintomáticas de leucemia, descaracterizando, assim as figuras da negligência e da imperícia (fls. 517 a 529).

Em resposta, o Promotor de Justiça pugna pelo provimento parcial do recurso, anuindo apenas com o afastamento da majorante da pena prevista no § 4º do artigo 121 do Código Penal (fls. 531 a 536).

O eminente Procurador de Justiça, Dr. Mauro Viveiros, manifestou-se pelo provimento parcial da apelação, com o reconhecimento da inaplicabilidade da causa de aumento de pena descrita no artigo 121, § 4º, primeira figura, do Código Penal. Anota que, em decorrência do afastamento da exasperação, a pena concreta final remanescente resta alcançada pela prescrição da pretensão punitiva estatal (fls. 545 a 552 - TJ/MT).

É o relatório.

PARECER (ORAL) O SR. DR. JOSÉ DE MEDEIROS Ratifico o parecer escrito.

VOTO

EXMO. SR. DES. RUI RAMOS RIBEIRO (RELATOR)

Egrégia Câmara:

A recorrente Cláudia Maria Soares, médica pediatra responsável pelo atendimento à criança V. F. B., durante os períodos em que permaneceu internado no Complexo Hospitalar Garças- Araguaia, dissentindo da sentença proferida pelo juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Barra do Garças/MT, nos autos da ação penal nº 171/2002, que a condenou por infringência ao disposto no artigo 121, §§ 3º e 4º, da Matriz Penal, interpôs o presente recurso de apelação, objetivando solução absolutória.

Para tanto, acentua a opinião técnica constante dos autos que evidenciariam ser a leucemia de difícil diagnóstico até mesmo para médicos especialistas, e que pelos resultados dos hemogramas e demais exames realizados até então não havia como ser detectada a doença. Afirma que no período em que a criança esteve sob seus cuidados não teria apresentado sintomatologia para suspeitar-se de quadro leucêmico, que solicitou os exames disponíveis naquela unidade de saúde, tendo encaminhado a criança para investigação e realização de tomografia computadorizada em Cuiabá.

Pune-se a título de culpa aquele que deu causa ao resultado penalmente descrito por inobservância do dever de cuidado que lhe incumbe, seja por imprudência, negligência ou imperícia (art. 18, II, CP), ou seja, produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, que poderia, com a devida atenção, ser evitado.

Realço nesse momento as lições de Cezar Roberto Bitencourt e de Neri Tadeu Camara Souza:

"A tipicidade do crime culposo decorre da realização de uma conduta não diligente causadora de uma lesão ou de perigo a um bem jurídico-penalmente protegido. Contudo, a falta do cuidado objetivo devido, configurador da imprudência, negligência ou imperícia, é de natureza objetiva. Em outros termos, no plano da tipicidade, trata-se, apenas, de analisar se o agente agiu como cuidado necessário e normalmente exigível. No entanto, o emprego adequado da diligência necessária deve ser aferido nas condições concretas existentes no momento do fato, além da necessidade objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurídico." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial, vol. 2, 7 ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 66).

"Mas há que provar a culpa do médico, ou sob a forma de dolo ou como culpa em sentido estrito, pois não se admite no direito penal a culpa presumida. Um simples erro, seja na investigação, diagnóstico ou tratamento, não é mandatório de que haja culpa penal. Se o médico agir com cuidado, observando os ditames da lex artis, inexistirá culpa em seu agir - muito menos dolo. Mesmo na presença de danos a bens jurídicos de outrem, exclui-se, nesses casos, a responsabilização penal do médico. O erro grosseiro por parte do médico sempre implicará em reconhecimento da culpa penal. As circunstâncias em que se deu o atendimento realizado, também influirão na determinação da presença de culpa penal no atuar do médico." (SOUZA, Neri Tadeu Camara. Responsabilidade Civil e Penal do Médico, 3 ed., Campinas/SP, Servanda, 2008, p. 168).

No caso dos autos, trata-se de imputação de homicídio culposo à médica pediatra, que atendeu a criança V. F. B. nos períodos de 10 a 12 de dezembro de 2000 (1ª internação), e de 06 a 08 de janeiro de 2001 (2ª internação), por imperícia, ao não diagnosticar a leucemia, mesmo tendo acompanhado a vítima por vários dias, conhecedora de seu quadro clínico e na posse do resultado dos hemogramas realizados, e negligência, por deixar de solicitar a realização de exame específico (mielograma) para o diagnóstico da doença.

Resta-nos, então, a verificação se a recorrente teria agido seguindo aquilo considerado como indicado, utilizando dos procedimentos e meios possíveis para o diagnóstico da enfermidade que acometia o paciente.

Destaco trecho de artigo publicado no site oficial do Instituto Nacional do Câncer (www.inca.gov.br), onde a Dra. Jane Dobbin, Chefe do Serviço de Hematologia do Hospital do Câncer I / INCA, discorre sobre o diagnóstico de leucemia aguda:

"As manifestações clínicas da leucemia aguda são secundárias à proliferação excessiva de células imaturas (blásticas) da medula óssea, que infiltram os tecidos do organismo, tais como: amígdalas, linfonodos (ínguas), pele, baço, rins, sistema nervoso central (SNC) e outros. A fadiga, palpitação e anemia aparecem pela redução da produção dos eritrócitos pela medula óssea. Infecções que podem levar ao óbito são causadas pela redução dos leucócitos normais (responsáveis pela defesa do organismo). Verifica-se tendência a sangramentos pela diminuição na produção de plaquetas (trombocitopenia). Outras manifestações clínicas são dores nos ossos e nas articulações. Elas são causadas pela infiltração das células leucêmicas nos ossos. Dores de cabeça, náuseas, vômitos, visão dupla e desorientação são causados pelo comprometimento do SNC. A suspeita do diagnóstico é reforçada pelo exame físico. O paciente pode apresentar palidez, febre, aumento do baço (esplenomegalia) e sinais decorrentes da trombocitopenia, tais como epistaxe (sangramento nasal), hemorragias conjuntivais, sangramentos gengivais, petéquias (pontos violáceos na pele) (Fig. 5) e equimoses (manchas roxas na pele) (Fig. 6). Na análise laboratorial, o hemograma estará alterado, porém, o diagnóstico é confirmado no exame da medula óssea (mielograma)." (DOBBIN, Jane. Leucemia aguda. Disponível em: http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=344, acessado em 06-8-2008 - grifo nosso).

Após análise dos autos, com a devida vênia ao douto Procurador de Justiça, não encontrei demonstração inequívoca de que a recorrente, como médica pediatra, teria incorrido em inobservância do dever de cuidado objetivo no atendimento à criança V. F. B..

Com efeito, merece relevo os seguintes trechos dos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação, Dra. Patrícia Carneiro de Brito, médica que atendeu a vítima no Hospital do Câncer de Goiânia/GO; Dra. Ana Márcia Fontes Campos, médica especializada em hematologia; e Dra. Luciana Rosa Bomtempo Rocha:

"(...) que é normal demorar uma média de quinze dias até dois meses para se chegar a um diagnóstico de leucemia, já que não é fácil chegar a ele, pois muitas vezes os sintomas podem mascarar outra doença, que normalmente no hemograma pode gerar a suspeita de uma doença mais grave, mas não tem conhecimento se foi realizado exame de hemograma na cidade de Barra do Garças...; (...); que como médica diante das fortes dores pelas quais a vítima passava, inclusive recusando-se a andar era para chamar a atenção dos médicos, no sentido de demonstrar um maior interesse e aprofundar na investigação do diagnóstico, porém é comum a demora desse diagnóstico, e até mesmo aqui em Goiânia, ocorre de muitas vezes o portador da leucemia passar por vários médicos sem que nenhum se lembre da hipótese da doença, ...; (...); que não sabe dizer se os médicos acusados poderiam aventar para a doença pelo exame hematológico, já que não teve acesso a este exame; que o hemograma realizado aqui em Goiânia não se apresentava bastante adulterado e não era visível e gritante os danos nele constante que pudesse levar um médico não especialista a desde logo suspeitar de leucemia; que muitas vezes ocorreu da adulteração ser tão absurda em relação a média, a média dos leocositos normais são de 5 a 10 mil e o hemograma de um portador de leucemia, pode chegar a 50 e até 80 mil, quando está gritante que algo grave está ocorrendo, porém os leocositos da vítima estavam pouco abaixo da média mínima, e girava em torno de 3.500, e havia alterações nas plaquetas e nas hemácias, mas não era de se chamar a atenção; (...)." (sic Patrícia Carneiro de Brito - fls. 445 - grifos nossos).

"(...); que os sintomas da doença da vítima que poderia levar a um diagnóstico precoce seria febre, dores nos ossos, hemorragia; que o diagnóstico da doença é feito através do exame denominado mielograma e que muitas vezes o médico que não é especialista não tem acesso a este exame, mas a maioria dos médicos podem suspeitar através dos sintomas apresentados pela vítima de que se trata de uma doença mais grave, e proceder ao devido encaminhamento;(...)". (sic Ana Márcia Fontes Campos - fls. 444 - grifos nossos).

"(...;) que com o resultado de um hemograma é possível apenas suspeitar de uma possível leucemia, pois existem outras doenças infectocontagiosas que apresentam os mesmos sintomas detectados na pessoa de Vinícius; que geralmente a evolução da doença que Vinícius apresentou é muito rápida, especialmente depois que o paciente chega nos níveis dos sintomas que Vinícius apresentava quando encaminhado ao HDT; (...); que a depoente não trabalha com pacientes de câncer e por isso não sabe informar o percentual de óbito nos casos em que a doença é diagnosticada e tratada precocemente; (...); que inicialmente a depoente suspeitou de uma doença hematológica em razão dos sintomas que a criança apresentava, em especial a palidez e os hematomas, e solicitou parecer da hematologia; que foi a hematologista que solicitou o exame de mielograma; (...)." (sic Luciana Rosa Bomtempo Rocha - fls. 457 - grifos nossos).

Evidencia-se, pois, a dificuldade de diagnóstico da leucemia, e mesmo pelo hemograma realizado em Goiânia/GO, quando a vítima já se apresentava em estágio avançado da enfermidade, "...não era visível e gritante os danos nele constante que pudesse levar um médico não especialista a desde logo suspeitar de leucemia..." (sic fls. 445), sendo enfatizado, em razão do quadro clínico anormal, que médico não especialista para a doença indicaria a necessidade "...aprofundar na investigação do diagnóstico..." (sic fls. 445) e de "...proceder ao devido encaminhamento..." (sic fls. 444).

Procedimentos estes, tomados pela apelante, consoante consta dos esclarecimentos do Diretor Técnico do Complexo Hospitalar Garças-Araguaia, que:

"Em 06 de janeiro de 2001 foi internado aos cuidados da Dra. CLAUDIA, recebeu medicamentos, foram realizados exames laboratoriais, de ultrassonografia e radiológicos. Recebeu Alta Hospitalar em 08 de janeiro de 2001, sendo encaminhado à Cuiabá para investigação e realização de Tomografia Computadorizada de Craneo (Serviço não disponível pelo SUS em Barra do Garças)." ( sic fls. 84),

Bem como da cópia do prontuário médico da vítima, especialmente na ficha de evolução acostada às fls. 48 dos autos, que a apelante, após constar dados dos exames e análises realizados na vítima, indicou a necessidade de investigação mais precisa (fls. 48verso).

Como visto, os sintomas apresentados pela vítima que poderiam levar a um diagnóstico precoce de leucemia seriam "febre, dores nos ossos, hemorragia" (fls. 444), sendo mencionados pelo Instituto Nacional do Câncer como sintomas que reforçariam a "suspeita de diagnóstico": anemia, palidez, infecções, dores de cabeça, náuseas, vômitos, visão dupla, desorientação, aumento do baço, sangramento nasal, hemorragias conjuntivais, sangramentos gengivais, petéquias e equimoses.

Segundo esclarecido pela testemunha arrolada pela acusação Maria de Fátima Pereira Marafon, vizinha dos pais da vítima, a sintomatologia mais grave, inchaço no abdômen e mudança de coloração da pele, ficou evidente nos dez dias antes do encaminhamento da criança a Goiânia:

"...na verdade as dores nas pernas foi que aparecerem trinta dias antes do encaminhamento para Goiânia; que durante o período de trinta dias acima mencionado, Vinícius perdia peso gradativamente; que o inchaço no abdômen e a mudança de coloração da pele foi que apareceram cerca de dez dias antes de o mesmo ser encaminhado a Goiânia; (...); que a depoente não ouviu nenhum comentário dos pais da vítima acerca de qual médico estava fazendo o atendimento nos últimos dez dias em que Vinícius ficou nesta cidade, justamente quando apareceram os sintomas do inchado do abdômen e alteração da coloração da pele; (...)." ( sic fls. 394 - grifo nosso).

Consta nos autos que o último atendimento registrado no Complexo Hospitalar Garças-Araguaia foi em 08 de janeiro de 2001, quando a vítima recebeu alta hospitalar e foi encaminhada a Cuiabá para investigação e realização de tomografia computadorizada (fls. 84).

O encaminhamento da vítima a Goiânia/GO pela Dra. Terezinha I. C. P. de Queiroz, é datado de 23 de janeiro de 2001 (fls. 235), quinze dias após a última visita da criança ao Complexo Hospitalar de Barra do Garças/MT.

Ouvida como testemunha arrolada pela acusação, Terezinha Iria Christina Penna de Queiroz declarou que, de maneira fortuita, teve contato com a vítima e alertou a genitora sobre possível gravidade do estado de saúde da criança:

"(...); que estava em uma reunião kardecista na casa de um amigo chamado Ênio Bastos, sendo que ali foi abordada por uma senhora que dizia ter um sobrinho bastante doente, isto, numa sexta-feira; que a depoente se dispôs a conversar com a mãe da criança e olhar a criança ali mesmo no local; que, entretanto, quando chegou perto da criança, a mãe não quis conversar com a depoente, dizendo que estava tudo bem, sendo que a criança já tinha estado em tratamento, tinha ido até para Cuiabá, mas que nenhuma doença havia sido diagnosticada; que a depoente passou a mão na barriga da criança e viu que o tamanho do fígado estava bastante alterado, sendo que a depoente disse que o ideal seria levar a criança para Goiânia/GO; (...);" (sic fls. 374 - grifo nosso).

Mais adiante, a mesma médica expôs que:

"(...) quando deu o seu depoimento junto à Polícia, teve acesso ao prontuário de Vinícius, bem como aos exames nele realizados, sendo que realmente o hemograma feito não deu nenhuma pista de que poderia se tratar de Leucemia, o que normalmente acontece, ou seja, normalmente o hemograma dá pelo menos um indício da presença da doença; que, entretanto, a depoente esclarece que o hemograma que viu datava de aproximadamente dois meses antes de fazer o encaminhamento de Vinícius a Goiânia, sendo que a doença pode ter aparecido após àquele exame; que a depoente esclarece que o exame específico para se diagnosticar Leucemia é o 'Mielograma', exame bastante invasivo, pois a coleta de material é feita no interior da medula óssea, não sendo exame de rotina e sequer é disponível nesta cidade; que a depoente soube que o caso de Vinícius, quando ainda estava sendo atendido nesta localidade, foi bastante comentado pelos médicos locais, pois ninguém conseguia diagnosticar o mal que o acometia; que houve, inclusive, muitas trocas de idéias entre médicos; (...); que a depoente esclarece que não tem como um médico local pedir o exame de Mielograma, justamente porque o mesmo, no caso específico, deveria ser realizado pelo SUS e não é disponível no local; (...) que a depoente esclarece que Leucemia aguda, que foi acusada no prontuário da vítima em Goiânia às fls. 21, é aquela bastante rápida, em que dificilmente se consegue um diagnóstico a tempo e a respectiva cura; (...); a depoente esclarece que na condição de médica não desconfiaria em uma primeira hipótese de leucemia, caso algum paciente seu apresentasse simplesmente febre e dores nas pernas, sendo que pensaria primeiramente em alguma infecção ou trauma e, somente com outros sintomas físicos é que poderia eventualmente pensar em leucemia. (...) a depoente esclarece que, na condição de médica, não pediria o exame de mielograma se o hemograma não desse nenhuma pista de que poderia se tratar de leucemia; que a depoente, entretanto, responde com base exclusivamente no resultado do hemograma, sendo que para uma resposta efetiva e completa deste questionamento haveria a necessidade de completar o resultado do exame de sangue hemograma com os sintomas e o quadro clínico do paciente, ao qual a depoente não teve acesso na época; (...)." (sic fls. 375 a 378 - grifos nossos).

Vê-se que dos autos não se pode extrair a ocorrência de erro grosseiro ou demonstração inequívoca de imperícia médica ou negligência no atendimento prestado à vítima pela apelante ao não diagnosticar a leucemia, pois os hemogramas, apesar de apresentarem certa alteração, não sinalizavam para a doença maligna dos glóbulos brancos do sangue (leucócitos). Dentro do procedimento esperado, após vários exames inconclusivos sobre a doença da criança (fls. 37, 51, 53 e 54), encaminhamento ao ortopedista (fls. 59) e para a realização de tomografia computadorizada (fls. 47), a apelante fez constar na ficha de evolução do paciente a solicitação de investigação mais precisa sobre seu quadro clínico (fls. 48-verso).

A realidade dos procedimentos, análises e eventual atendimento médico realizado em Cuiabá não restam demonstrados documentalmente nestes autos, sendo certo que a genitora reconhece que a tomografia computadorizada foi realizada nesta Capital, e:

"(...) que a Dra. Cláudia disse que não sabia ler o resultado e que o exame deveria ser encaminhado a um neurologista; que, porém, a depoente encaminhou o exame para outra Pediatra, Dra. Terezinha, a qual conseguiu ler o resultado do exame, dizendo que Vinicius tinha toxoplasmose; que, entretanto, não era esta a causa dos males de Vinícius; (...); que a Dra. Terezinha, a qual leu o resultado da tomografia computadorizada, preencheu alguns papéis e encaminhou Vinícius para um hospital da cidade de Goiânia/GO, local onde foi diagnosticado que o caso era realmente de leucemia; (...). (sic fls. 363 e 364)

Com efeito, se ao final da ação penal condenatória ainda pairam dúvidas sensíveis sobre ter a apelante incorrido em homicídio culposo, a absolvição é medida que se impõe, diante do princípio in dubio pro reo, mesmo na hipótese de restar dúvida quanto à procedência das alegações da defesa.

Sobre o ônus probandi no processo penal, o Supremo Tribunal Federal de há muito nos tem advertido:

"'(...) O PROCESSO PENAL COMO INSTRUMENTO DE SALVAGUARDA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS. - A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do jus libertatis titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, o processo penal só pode ser concebido - e assim deve ser visto - como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu - que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória -, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público. A própria exigência de processo judicial representa poderoso fator de inibição do arbítrio estatal e de restrição ao poder de coerção do Estado. A cláusula nulla poena sine judicio exprime, no plano do processo penal condenatório, a fórmula de salvaguarda da liberdade individual.

O PODER DE ACUSAR SUPÕE O DEVER ESTATAL DE PROVAR LICITAMENTE A IMPUTAÇÃO PENAL. - A exigência de comprovação plena dos elementos que dão suporte à acusação penal recai por inteiro, e com exclusividade, sobre o Ministério Público. Essa imposição do ônus processual concernente à demonstração da ocorrência do ilícito penal reflete, na realidade, e dentro de nosso sistema positivo, uma expressiva garantia jurídica que tutela e protege o próprio estado de liberdade que se reconhece às pessoas em geral. Somente a prova penal produzida em juízo pelo órgão da acusação penal, sob a égide da garantia constitucional do contraditório, pode revestir-se de eficácia jurídica bastante para legitimar a prolação de um decreto condenatório. Os subsídios ministrados pelas investigações policiais, que são sempre unilaterais e inquisitivas - embora suficientes ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público -, não bastam, enquanto isoladamente considerados, para justificar a prolação, pelo Poder Judiciário, de um ato de condenação penal. É nula a condenação penal decretada com apoio em prova não produzida em juízo e com inobservância da garantia constitucional do contraditório. Precedentes. -Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-Lei nº 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Não se justifica, sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se - para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica - em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambigüidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas que poderiam conduzir qualquer magistrado ou Tribunal a pronunciar o non liquet. (...)" (STF, HC 73.338/RJ, Relator Min. CELSO DE MELLO, DJ 19-12-96, p. 51766, Ement. Vol. 01855-02, p. 270). (grifo nosso)

O conjunto probatório, sem dúvida, encerra indícios de autoria culposa pela apelante, que legitimaram o início da persecutio criminis, mas, não sendo elucidada de maneira vigorosa, incontroversa no decorrer da instrução, a melhor solução é o in dubio pro reo.

Por todo o exposto, em dissonância com o Parecer escrito, provejo o recurso de apelação criminal interposto por Cláudia Maria Soares, para absolvê-la da imputação da prática do delito previsto no artigo 121, §§ 3º e 4º, da Matriz Penal, com fundamento no artigo 386, VII, do Código de Processo Penal.

Custas na forma da lei. É como voto.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em epígrafe, a PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, sob a Presidência do DES. PAULO INÁCIO DIAS LESSA, por meio da Câmara Julgadora, composta pelo DES. RUI RAMOS RIBEIRO (Relator), DES. JUVENAL PEREIRA DA SILVA (1º Vogal) e DES. PAULO INÁCIO DIAS LESSA (2º Vogal), proferiu a seguinte decisão: À UNANIMIDADE, DERAM PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.

Cuiabá, 1º de setembro de 2009.

DESEMBARGADOR PAULO INÁCIO DIAS LESSA
PRESIDENTE DA PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL

DESEMBARGADOR RUI RAMOS RIBEIRO
RELATOR
PROCURADOR DE JUSTIÇA

Publicado em 09/09/09




JURID - Apelação criminal. Sentença condenatória. Homicídio culposo. [15/09/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário