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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

JURID - Antecipação terapêutica de parto. [16/09/09] - Jurisprudência


Autorização para antecipação terapêutica de parto.
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PODER JUDICIÁRIO
ESTADO DE MATO GROSSO
COMARCA DE CUIABÁ
5ª VARA DE FAMÍLIA E SUCESSÕES

PROCESSO N. 827/2009

AUTORIZAÇÃO PARA ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO

"... a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou..."
Hannah Arendt.

Recebi às 14:43 h., do dia 09/09/2009.

Vistos etc...

Trata-se de Procedimento de Jurisdição Voluntária, proposto por G. DA S. M., postulando Autorização para Antecipação Terapêutica de Parto.

A requerente afirma estar gestante, atualmente, com 15 (quinze) semanas, e vem sendo acompanhada na CLINMED, através de sua médica FABÍOLA LAUREN DE CASTRO SULZBACHER, esta, médica assistente, e do DR. ANSELMO VERLANGIERI CARMO, este, responsável pelo último exame (fls. 21/24), então indicado como pesquisador residente na Universidade de Londres (Research Fellowship).

Conforme acrescido, os médicos efetivaram exames especializados (Ultra Sonografia Genética Fetal Nível 4), quando então constataram que o feto apresenta um quadro de EXENCEFALIA-ACRANIA.

Segundo restou informado, pela inserção dos autos, através de dados médico-científico, estes, descrevem que a anomalia fetal apresentada é seguramente incompatível com a vida extra-uterina, asseverando que, caso a gestação venha a prosseguir, todos os dados da literatura médica apontam para a morte do recém-nascido após o parto.

A inicial, ainda, informa que a requerente encontra-se extremamente angustiada, em face da situação sem prognóstico para o feto, mas mantém sua capacidade crítica e decisão.

Fez acrescer que a antecipação do parto, em hipótese de gravidez onde a vida da mãe se encontra em jogo, é o único procedimento médico cabível, entendendo que o contrário importaria indevida e injustificável restrição ao direito à saúde desta.

Acresce que, apesar do feto ser biologicamente vivo em razão de ser feito de células e tecidos vivos, o mesmo é juridicamente morto dada à ausência de possível fala quanto à ocorrência da morte cerebral, em razão de inexistir o seu conceito próprio.

Postula, ao final, pela tutela de urgência em face do risco à saúde e à vida da requerente (fumus boni iuris e periculum in mora).

Juntou docs. às fls. 18/29, incluindo nos autos, desde o primeiro exame informativo de anomalia fetal, bem como o confirmativo da inviabilidade fetal, em decorrência da anencefalia, na modalidade de exencefalia-acrania.

Recebido o processo no dia 04 de setembro, na mesma data foi determinado o encaminhamento ao Ministério Público, para as suas considerações, em face da disposição do art. 82 do CPC.

Às fls. 31/34, o Ministério Público se manifesta, pela viabilidade da solicitação, acrescendo que apesar de ter posicionamento jurídico, a princípio, contrário às pretensões de autorização judicial de aborto, em situações análogas, no feito em análise, verificou que há estudo especializado, em preceitos unânimes médico-científicos, quanto à incompatibilidade da vida extra-uterina, entendendo, via de conseqüência, hábil a autorização pleiteada, mediante julgamento antecipado.

É o relatório necessário.

DECIDO.

Trata-se de Procedimento de Jurisdição Voluntária (presença de interessados e não partes), proposto por G. DA S. M., postulando Autorização para Antecipação Terapêutica de Parto.

1 - DO JULGAMENTO ANTECIPADO - URGÊNCIA

Em observância ao contexto dos autos, bem como manifestação da autora e do Ministério Público, entendo que as provas documentais já restam suficientes à análise final, nos termos do art. 330, I do CPC.

Acresce-nos, ainda, consignar:

"É irrelevante a concordância de ambas as partes, quanto ao julgamento antecipado do lide, que constitui faculdade atribuída ao juiz" (Acórdão em JTA 39/54).

2 - DO MÉRITO

Nesta solitária missão de julgar, recebi o processo nesta tarde. Dediquei-me a pesquisar toda a questão que se relaciona à temática, objetivando deter o máximo de elementos à formação de uma convicção não calcada em minha fé, mas na devida compreensão dos espaços normativos e valorativos que se propõe na perspectiva do direito e da medicina.

Exatamente por isso, perquiri obras médicas, consultei especialistas, verifiquei a significância de cada palavra inserida no diagnóstico procedido pela equipe de profissionais atuantes no feito.

Mesmo após isso, quando às 18:45 h. da data de hoje, deixei o Fórum para dirigir-me à sala de aula da Universidade Federal de Mato Grosso, para fins de ministrar, como professora efetiva da instituição, a matéria de processo de conhecimento, os fatos e os indicativos do processo não deixaram de permanecer em minha mente, levando-me, após ministrar a aula, a permanecer em pesquisa até o presente momento (23:00 h.).

Uma tarefa solitária e, por vezes, imensamente angustiante, em decorrência da perspectiva de justiça que se almeja encontrar, diante de temas profundos e significativos à sociedade.

Afinal, a Eutanásia, o aborto, o suicídio, a clonagem, as células-tronco, dentre outros temas de incomensurável dificuldade de trato, provocam discussões apaixonadas e desenfreadas, acabando por não permitir uma discussão racional, profunda e civilizada.

Proponho essa missão no presente feito, com fundamento na perspectiva de John Finnis. Ele, sem sombra de dúvida, é um bom exemplo de uma coerência substantiva do argumento.

Nesta diretriz, vale-nos inserir os escritos de Eduardo Martín Quintana, em sua obra Fisolofía Jurídica, Política y Moral em Jürgen Habermas, Ed. Rubinzal - Culzoni - Buenos Aires - Argentina, p. 11, quando define "las nueve exigências metodológicas de la razón práctica que constituyen el método de la leyu natural para elaborar la moral a partir de los primeros principios premorales de la ley natural: 1) un plan de vida coherente; 2) ninguna preferencia arbitraria entre valores; 3) ninguna preferencia arbitraria entre personas; 4) desprendimiento y desapego; 5) compromiso en el proyecto asumido; 6) eficiencia razonable; 7) respeto a todo valor básico en todo acto; 8) las exigencias del bien común, y 9) seguir la propia conciencia."

Afinal, em uma sociedade aberta e democrática, como bem apregoou Hannah Arendt, externando a sua sabedoria, bem como contribuição humanista de suas obras, bem como, posteriormente, através do maior filósofo vivo da contemporaneidade, Jürgen Habermas, todos precisam deter a oportunidade de ouvir e conhecer as várias opiniões sobre as questões mais importantes, sob todas as perspectivas.

A pluralidade é tolerância, aceitação e convivência dos divergentes.

Já são 01:15 h. da madrugada, inicia-se um novo dia (10/09). A par disso, buscarei a melhor resposta possível para o presente caso, ainda que o mesmo possa tocar, profundamente, questões religiosas, morais, psicológicas, fisiológicas, emocionais, além do amplo olhar para a ambiência jurídica. A intenção é consagrar um prisma racional, ou seja, livre de dogmas impositivos de concepções de fé, DEVENDO, A PERSPECTIVA DO JULGADO, VALER PARA TODOS, INCLUSIVE PARA AQUELES QUE NÃO PROFESSAM CREDO ALGUM.

Vejamos, então, todas as vertentes possíveis, ainda que se argumente que a condição do feto anencefálico como ser, por ser desprovido de qualquer razão (atividade cerebral racional), está absolutamente alheio a todo esse embate.

A - A PRIMEIRA ELEMENTAR QUE NOS SURGE:

É pacífica a compreensão médica de que a morte cerebral equivale à morte propriamente dita? Como ficaria então a perspectiva do direito à vida dos fetos anencefálicos?

Em consulta aos livros, em linguagem comum, a anencefalia é "a ausência de cérebro", anomalia que importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central: consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade. A patologia, nada obstante, permite algumas funções inferiores que controlam a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.

Assim, a anencefalia consiste na ausência no feto dos dois hemisférios cerebrais. Não correspondendo, exatamente, no plano médico, à "morte cerebral". O sinal inequívoco desta reside na constatação da ausência funcional TOTAL E DEFINITIVA DO TRONCO CEREBRAL. Este (tronco cerebral) está presente nos fetos anencéfalos e permite, em alguns casos, uma sobrevivência de alguns dias, fora do útero materno, ainda que sejam tão somente para as atividades breves de respiração, funções vasomotoras e da medula espinhal.

B - A SEGUNDA ELEMENTAR:

Quais são os riscos e conseqüências?

Nas consultas aos livros e manuais, unanimemente, toda a medicina e tecnologia científica asseveram quanto à inexistência de qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro.

Na pesquisa procedida pela presente Magistrada, junto aos livros, verificou-se que aproximadamente 65% dos fetos anencefálicos morrem AINDA no período INTRA-UTERINO, o que resulta em RISCO DE VIDA À MÃE.

Quanto a isso, as pesquisas médicas apontam alguns indicativos de que a gestante é prejudicada pela gestação de anencéfalo. Os cientistas afirmam que há evidências muito claras de que a MANUTENÇÃO DA GESTAÇÃO PODE ELEVAR O RISCO DE MORBI-MORTALIDADE MATERNA. Nesse sentido, temos a obra de SHEWMON A., Anencephaly: selected medical aspects. New York: Hastings Center Rep, 1988, p. 325.

De igual forma, há pesquisas desenvolvidas pela FEBRASGO, AFIRMANDO SER FREQÜENTE A ASSOCIAÇÃO DA ANENCEFALIA À POLIHIDRÂMNIO, EM 50% DOS CASOS. Esta alta incidência deve-se ao fato de que parte do líquido amniótico é deglutida pelo concepto.

Nesses casos, observa-se uma associação com polihidrâmnio e trabalho de parto prolongado, com incidência de hipotonia e hemorragia no pós-parto de 3 a 5 vezes maior.

Ainda, a ciência médica descreve que a apresentação fetal anômala (pélvico transverso, de face e oblíquos) é encontrada em gestações de anencéfalo devido à dificuldade de insinuação do pólo fetal no estreito inferior da bacia, CAUSANDO TAMBÉM A DOENÇA HIPERTENSIVA ESPECÍFICA DE GRAVIDEZ (DHEG), COMPROMETENDO, A PRÓPRIA SAÚDE DA GESTANTE.

Nos registros médicos-científicos procedidos, há ainda informes de que com o parto, o fato da mulher não amamentar, em decorrência do bloqueio da lactação, se aguardar o momento natural da expulsão do feto, em decorrência da anencefalia, HÁ INVOLUÇÃO UTERINA MAIS LENTA, SUSCITANDO SANGRAMENTO ÀS VEZES DE GRANDE MONTA NO PUERPÉRIO.

C - TERCEIRA ELEMENTAR: DA LEITURA DE DIVERSOS MANUAIS DE MEDICINA, ARTIGOS E PUBLICAÇÕES DA ÁREA MÉDICA

Mas, o que vem a ser a anencefalia nos padrões médicos?

A anencefalia, conforme os manuais de medicina consultados, consiste em malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e/ou de toda a calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Esta é a malformação fetal mais freqüentemente relatada pela medicina. Assim, obtive, a imagem que se segue, no concernente ao significado real da anencefalia:

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f0/Anencephaly_side.jpg

Essas questões precisam ser consideradas, em decorrência dos padrões impingidos à vida das pessoas, bem como riscos e repercussões do julgado à efetiva consagração da justiça, tão-almejada pela presente Magistrada.

Afinal, o juiz precisa considerar, acima dos interesses indicados pelas partes, a repercussão, a projeção e as conseqüências de sua decisão. Isso, pois, é decorrência do próprio dever da inafastabilidade (art. 5º, inciso XXXV da CF/88) e acesso.

D - QUARTA ELEMENTAR: INCONGRUÊNCIAS

Mas e o caso da criança Marcela de Jesus? Famoso caso brasileiro, ocorrido no Município de Patrocínio Paulista, em que uma criança foi diagnosticada como anencéfala e acabou vivendo, por 1 ano, 8 meses e 12 dias após o nascimento.

A menina nasceu no dia 20 de novembro de 2006 e morreu no dia 31 de julho de 2008. Foi divulgado que Marcela não tinha o córtex cerebral e, sim, apenas o tronco cerebral, responsável pela respiração e pelos batimentos cardíacos. Contudo, segundo alguns especialistas, a menina, na verdade, sofria de uma malformação do crânio (encefalocele), associada a um DESENVOLVIMENTO REDUZIDO DO CÉREBRO (MICROCEFALIA). Já a anencefalia propriamente dita é caracterizada PELA AUSÊNCIA TOTAL DO CÉREBRO E DA CAIXA CRANIANA, existindo tão-somente o TRONCO CEREBRAL, SEM POSSIBILIDADE DE SOBREVIVÊNCIA extra-uterina.

Inicialmente, devo confessar que o presente trabalho decisório foi iniciado pela presente Magistrada com as seguintes dúvidas/indagações, em decorrência, principalmente, de uma conservadora formação moral, calcada, principalmente, na vivência católica(1) e espírita(2), apesar da permanente crítica racional que envolve a minha personalidade. Mas, acredito ser necessário frisar, que, originalmente, quando da leitura do presente caso, havia em mim as seguintes indagações:

a) A dignidade da vida do feto anencefálico está abaixo do bem-estar da mulher gestante?

b) Uma gravidez pode ser comparada a tortura ou a tratamento degradante?

c) Fica a dignidade de uma gestante aviltada por carregar em seu ventre um feto anencefálico? Ou isso é impingido porque o feto não atende às expectativas da sociedade?

d) O abortamento ou o eufemismo "antecipação terapêutica do parto" se justifica por uma razão de bem-estar ou é questão de saúde da gestante?

e) A vida requer adjetivos ou ela se basta enquanto si?

f) A vida só deve ser protegida se útil? Qual o sentido dessa utilidade e quem seriam os úteis para viver?

Contudo, pela inserção extremamente questionadora, inerente a minha personalidade, estas indagações serviram muito mais para uma verdadeira compreensão da Justiça que cerca a temática. Sinto, nesta oportunidade, uma desmedida paz por ter encontrado respostas.

Exatamente por isso, caminhos foram trilhados, após uma incansável procura por dados seguros e técnicos que pudessem, efetivamente, demonstrar todos os riscos que circundam a questão em análise.

No dia 28 do mês de agosto, do corrente, o debate em audiência junto ao C. Supremo Tribunal Federal(3), expôs que, a anencefalia é letal em 100% dos casos quando o diagnóstico é correto.

E - QUINTA ELEMENTAR: SEGURANÇA

Assim, diante das incertezas geradas no caso da Marcela, diagnosticada, inicialmente, como portadora de anencefalia, passei, então, com cautela, a me questionar quanto à segurança apresentada nos exames inseridos nos presentes autos.

Seriam efetivamente seguros os diagnósticos apresentados?

Novamente, a presente Magistrada efetivou pesquisa quanto ao saber e campo profissional dos profissionais da área de saúde indicados nos autos, motivando, assim, mais uma pesquisa da presente magistrada, primeiramente, para uma compreensão necessária à autoridade da análise científica procedida pelos médicos acrescidos nos autos.

Assim, para obter a devida constatação de que estaríamos frente a uma indicação precisa, passei a análise dos currículos profissionais, dos médicos responsáveis pelo laudo acrescido às fls. 21/24, momento em que restou consignada a especialidade de ginecologia e obstetrícia da Dra. FABÍOLA LAUREN DE CASTRO SULZBACHER - CRM 4338 (fls. 21) e do JOSÉ FERNANDO CURY (fls. 26), como especialista em Radiologia e Diagnóstico por imagem, atuante no Hospital Militar, como médico radiologista, bem como na Clínica de Radiologia de Cuiabá e na Policlínica do CPA I.

De igual forma, o profissional, responsável pelo laudo de fls. 22/24, Dr. Anselmo Verlangieri Carmo, detém currículum vasto na temática científica de má-formação fetal, possuindo especialização em Medicina Fetal pela Harris Birthright Research Centre For Fetal Medicine (2001), Research Fellowship na Universidade de Londres, mestrado em Medicina Obstetrícia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), doutorado em Medicina (Obstetrícia e Ginecologia) pela Universidade de São Paulo (2001) - USP e Residência-médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1994), sendo, inclusive, Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso, com livros publicados e artigos científicos, inclusive internacionalmente.

Vale-nos, ainda, a regularidade dos mapeamentos científicos acrescidos aos autos, no que se refere à clareza de seus termos.

Superada essas questões, vejamos o enfoque da jurisprudência e da doutrina.

Assim:

TJAP: "Direito penal - Jurisdição voluntária - Alvará de autorização judicial para realização de aborto - Feto portador de anencefalia - anomalia comprovada em laudo médico - Estado depressivo da gestante atestado por laudo psicológico circunstanciado - Consciência da gestante e de seu marido das possíveis conseqüências de um aborto - interpretação da norma jurídica em consonância com art. 5° (Lei de Introdução ao Código Civil,) - Provimento da apelação - Demonstrados por laudo médico e psicológico a anencefalia do feto, sua incompatibilidade com a vida extrauterina, o avançado quadro depressivo da gestante por carregar em sou ventre um ser anormal e sua consciência das possíveis seqüelas que podem decorre de uma aborto malsucedido, compõe-se a interpretação das normas vigentes segundo os fins a que se destinam e á luz das exigências do bem comum, para o fim de reformar a sentença fustigada e deferir o alvará autorizando a interrupção da gravidez" (RDJ 22/264)

"Ora, se a lei penal permite o aborto de fetos normais, sem anomalia alguma, e por isso com condições de sobrevida e provavelmente de desenvolvimento físico e mental normais, no caso de gravidez resultante de estupro, "criou o legislador causa de justificação assemelhada ao estado de necessidade, para permitir o sacrifício do direito à vida do embrião ou do feto em face do peso maior dado a outro bem jurídico - o direito da mulher à liberdade sexual. Tal permissão só pode se explicar por aquela consideração das repercussões negativas do nascimento indesejado, nada impedindo, assim, que, coerentemente com posição já manifestada pelo legislador, a licitude da realização do aborto se estenda a outros casos em que, por razões diversas, o nascimento se mostre igualmente indesejado" (MARIA LÚCIA KARAM, "Sistema Penal e Direitos da Mulher", artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais, ed. RT, São Paulo, 1995, vol. 09, p. 160).

F - SEXTA ELEMENTAR: ANÁLISE PSICOLÓGICA

Além de todas as perspectivas técnico-jurídicas e do campo científico que envolve o tema, resta-nos observar o envolvimento e as características emocionais da requerente.

Para tanto, foram acrescidos informativos psíquicos - emocionais, a respeito da gestante, momento em que a psicóloga fez consignar o seguinte quadro clínico e de avaliação psicológica:

"Percebeu-se na paciente retraimento, preocupação consigo mesma e uma pequena insegurança em razão da situação em que se encontra. Apresentou ainda labilidade, ou seja, instabilidade emocional, tendência em passar, alternadamente, por estados de alegria e de melancolia. Apesar disso, é uma pessoa calma, satisfeita com a vida, equilibrada, paciente, quieta, evita conflitos, estável sob pressão, competente no trabalho, gosta de observar as pessoas, tem compaixão e cuidado. Prognóstico: Geruza está nos parâmetros normas dos sintomas citados acima, sofrendo momentaneamente com a gravidade do feto, podendo inclusive este sofrimento prolongar-se. Além disso, a paciente está consciente do fato e da intensidade da gestação, participou de vários exames para tomada de decisão e conclui que a melhor solução seria interrompê-la do que levar a dor adiante, já que não há expectativas de vida do feto (Rafaela Franco Borges Ramos - Psicóloga CRP: 14/02737-1)".

De igual forma, o cônjuge da requerente e figura paternal do feto, fez acrescer a sua concordância à efetivação da antecipação do parto, na forma requerida (fls. 20).

G - SÉTIMA ELEMENTAR: PONDERAÇÃO.

Todas essas questões trazem-nos uma questão inarredável: O direito não pode exigir heroísmo das pessoas, ainda mais quando isso importe em risco à saúde e vida destas. Soma-se a isso a evidência médico-científico constatada: a vida do anencéfalo é seguramente incompatível com a vida extra-uterina.

Diante desse padrão fático-jurídico, não permitir a concreção da manifestação de vontade da gestante, ora requerente, é ato de força e não de direito ou justiça. Restando-nos, pois, observar que essa diretriz caracterizaria a própria legitimação da tortura por parte do Judiciário.

Afinal, a noção de humanismo é sintetizada através do pensamento voltado para o humanus e sua humanitatis, da fraternidade e tolerância entre os diferentes e suas perspectivas distintas de mundo.

Agora, sinto-me efetivamente consciente dos limites e dos resultados deste julgado e, assim, posso dizer que a Revolução Francesa caracterizou um marco na história da sociedade, delimitando uma estrutura de princípios, posteriormente desenvolvidos na perspectiva humanista, "liberdade, igualdade e fraternidade", assentando, assim, as novas estruturas sociais, estas, pois, revolucionárias. Mas, na atualidade, esse paradigma liberal cede espaço à concreção de uma efetiva justiça, capaz de compreender o indivíduo como cidadão consciente de seus direitos e deveres, co-responsável por si e pela comunidade.

Afinal:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Ainda, temos a própria disposição da Lei 11.340/06, reconhecida como Lei Maria da Penha:

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

§ 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 2º Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

Afinal, a construção do ordenamento jurídico na perspectiva dos direitos humanos, seja interno ou internacional, se inscreve diante de seu contexto histórico e de cultura, onde A FALTA DE CONSCIÊNCIA DA SOCIEDADE JAMAIS LHES MUDA O ALCANCE E A IMPORTÂNCIA FUNDAMENTAIS.

Nesses horizontes, vale-nos inserir uma contribuição:

"A violência de gênero é um tipo específico de violência que vai além das agressões físicas, morais, psicológicas e patrimoniais, pois implica a fragilização da mulher, o que acarreta a limitação de suas ações, agindo diretamente sobre a manifestação de vontade feminina."(4)

Assim, os conceitos de justo, justiça, igualdade, dignidade, assumem, neste decisório, uma elementar objetiva a ser observada.

H - OITAVA ELEMENTAR: ART. 335 DO CPC.

Em outro horizonte, nesta oportunidade, imagino a requerente em seus dias de rotina. Imagino-lhe caminhando quando os mais diversos olhos humanos repousam em seu semblante e em seu ventre, questionando-lhe o tempo... a espera, a definição: se menino ou menina. Como se houvesse uma trajetória hábil a ser seguida...

Imagino-lhe só, na sua própria identificação e co-relação, diante da desesperança dos prognósticos e de seu sonho: um anterior anseio pela experiência da superação de si, de sua história e inserção: a frustração da primeira experiência de gravidez.

Sendo, esta Magistrada, mãe... posso imaginar, mas não aquilatar, o que ocorre no interior, no emocional, no seu psíquico. E, assim, a requerente, apesar de todas as suas angústias, chegou às portas do Judiciário, na intenção de obter um amparo que venha a minimizar, ao menos, a sua dor... Uma completa exposição de seu sofrimento, de sua condição e expectativa gerada, em conjunto com o seu marido, após 02 (dois) anos de casados (fls. 28).

I - DA CONCLUSÃO

Diante de todas as inserções descritas, tanto na seara fática, perspectiva médica, científica, inclusive no que se refere aos riscos à saúde e à vida da requerente/genitora, bem como de princípios, regras analógicas, horizontes jurisprudencial e doutrinário, RESTA-NOS GARANTIR A EXPRESSÃO VOLITIVA DA REQUERENTE, com fundamento, inclusive, no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III da CF).

Via de conseqüência, determino a expedição de Autorização para que a REQUERENTE TENHA O DIREITO À MANIFESTAÇÃO DE VONTADE, para os EFEITOS PRETENDIDOS INICIALMENTE (Antecipação terapêutica de Parto), desde que estes permaneçam sendo A SUA VONTADE, até o momento da intervenção médica.

Esgotados os trâmites processuais e tratando-se de jurisdição voluntária, nos termos do art. 1.103 e segs. do Código de Processo Civil, EXTINGO O PROCESSO CONFORME MÉRITO DA JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA, bem como disposição atinente ao art. 1.109, c/c art. 269, I do CPC.

Sem custas ou honorários, em decorrência dos benefícios de gratuidade e elementares do procedimento.

P. R. Intime-se.

Cumpra-se.

Cuiabá, 4:40h da madrugada do dia 10 de setembro de 2009.

AMINI HADDAD CAMPOS
Juíza de Direito - Auxiliar de Entrância Especial

* Colaboração de Andréia Reche.



Notas:

1 - Posicionamento religioso do meu pai e por mim seguido, inclusive nos colégios, seja no 1º. Grau (Colégio Notre Dame de Lourdes) seja no 2º. Grau (Colégio São Gonçalo) ou, ainda, no mestrado em Direito Constitucional (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC/RJ), bem como no doutorado em Direitos Humanos, junto à Universidade Católica da Argentina - UCSF. [Voltar]

2 - Posicionamento filosófico-religioso da minha mãe, vivenciado por mim nas mais diversas análises e compartilhamentos de vida, até a atualidade. [Voltar]

3 - Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao Egrégio Supremo Tribunal Federal, escudada na Lei nº 9.882/99, segundo a qual confere-se legitimidade para a argüição àqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, visando à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. [Voltar]

4 - CAMPOS, Amini Haddad e CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Curitiba- PR: Ed. Juruá. 2ª Tiragem. 2008. p. 221. [Voltar]



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