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terça-feira, 14 de julho de 2009

JURID - Pena. Regime. Progressão. [14/07/09] - Jurisprudência


Pena. Regime. Progressão.

Tribunal de Justiça de São Paulo - TJSP.

Habeas Corpus nº 990.08.174696-4

São Paulo

Impetrante: Adriana Mayer dos Santos

Paciente: Maria Magdalena Smith

PENA - Regime - Progressão - Indeferimento do pedido pelo fato de a sentenciada ser estrangeira em situação irregular no país - Descabimento - Preenchimento do requisito objetivo (cumprimento de mais de um sexto da pena no regime fechado) e subjetivo (bom comportamento carcerário) pela condenada, que é titular dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal - Alegado risco de fuga que decorre de mera presunção, não sendo baseado em dados concretos do processo - Inaplicabilidade, no caso, da vedação ao exercício de atividade remunerada pelo estrangeiro (imposta pelo artigo 98 da Lei n. 6.815/80), uma vez que a atividade laborativa a ser desenvolvida no regime semi-aberto é parte integrante da execução individualizada da pena e visa ao cumprimento de seus objetivos ressocializadores, não sendo abrangida pela limitação imposta no Estatuto do Estrangeiro - Inexistência de qualquer distinção (na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal) quanto à nacionalidade dos sentenciados, bem como de impedmento legal ao deferimento da progressão de regime com fundamento no local de nascimento do condenado, sendo certo que eventual interpretação restritiva dos direitos dos sentenciados estrangeiros criaria uma hipótese de regime integral fechado não prevista em qualquer diploma legal - Ordem concedida para progredir a paciente ao regime semi-aberto.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº 990.08.174696-4, da Comarca de São Paulo, em que é impetrante ADRIANA MAYER DOS SANTOS e Paciente MARIA MAGDALENA SMITH.

ACORDAM, em 1ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "CONCEDERAM A ORDEM PARA PROGREDIR MARIA MAGDALENA SMITH AO REGIME SEMI-ABERTO. V.U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores PERICLES PIZA (Presidente sem voto), MARCO NAHUM E FIGUEIREDO GONÇALVES.

São Paulo, 02 de fevereiro de 2009.

MÁRCIO BARTOLI
RELATOR

VOTO Nº 18.334

1. A defensora pública Adriana Mayer dos Santos impetra a presente ordem de habeas corpus em favor de Maria Magdalena Smith, sob a alegação de que a paciente se encontra submetida a constrangimento ilegal consistente na sua manutenção em regime fechado, pois teve indeferido pedido de progressão de sistema prisional, pelo fato de ser estrangeira em situação irregular no país. Alega que a motivação da decisão não encontra amparo legal e afronta os princípios constitucionais da dignidade da pessoa e da isonomia, pois constituiria discriminação em razão de ser estrangeira. Pede a reforma da sentença para ser deferida a sua progressão ao regime semi-aberto (cf.razões de fls. 20/24).

O pedido liminar foi negado pelo despacho de fl. 25.

Juntou-se aos autos o ofício de informações prestadas pela autoridade impetrada (fl. 28), acompanhadas de cópias (fls. 29/38). Manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça as fls. 40/6.

2. Segundo consta do ofício de informações, Maria Magdalena Smith foi condenada à pena de sete anos, três meses e vinte e dois dias de reclusão, pela prática do delito previsto no artigo 33, caput, c.c. artigo 40, inciso I, ambos da Lei nº 11.343/06. O término do cumprimento da pena está previsto para o dia 16 de maio de 2014. Em 11 de novembro de 2008, foi indeferido seu pedido de progressão de regime. A autoridade apontada como coatora decidiu que por ser a sentenciada estrangeira é "incabível a concessão tanto do livramento condicional quanto da progressão ao regime semi-aberto ou aberto para os estrangeiros em situação administrativamente irregular" (fl. 32), e que, embora inexista decreto de expulsão contra a paciente, há grande risco de fuga (fls.32/4).

É caso de concessão da ordem.

3. Inicialmente, registra-se que a execução da pena, além de uma atividade administrativa atribuída aos órgãos, penitenciários do Estado-Administração, tem tratamento constitucional, conclusão que se extrai da interpretação do caput e dos incisos XXXIX, XLVI, XLVII, XLVIII e XLIX, do artigo 5º, da Constituição Federal, estando submetida, diretamente, aos princípios da igualdade, da legalidade, da individualização e da humanidade das penas.

4. Embora, em princípio, a situação jurídica da paciente não esteja abrangida pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, que se refere taxativamente apenas "aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País", é posição consolidada na doutrina e na jurisprudência que se aplicam os direitos e garantias fundamentais aos brasileiros e estrangeiros que estejam no território nacional, referindo-se a questão mais à soberania do que a limitação da titularidade desses direitos, que são universais por natureza. Nesse sentido a afirmativa do Min. Celso de Mello[Constituição Federal anotada 2ª ed. São Paulo Saraiva, 1986, p 424 Igualmente é a posição de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco: "A declaração dos direitos fundamentais da Constituição abrange diversos direitos que radicam diretamente no princípio da dignidade do homem - princípio que o art 1º, III, da Constituição, Federal toma como estruturante do Estado democrático de direito o respeito devido à dignidade de todos os homens não se excepciona pelo fator meramente circunstancial da nacionalidade" (Curso de direito constitucional São Paulo Saraiva, 2007, p 262-263)]: "A garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais, salvo as exceções de ordem constitucional, se estende também aos estrangeiros não residentes ou domiciliados no Brasil. O caráter universal dos direitos do homem não se compatibiliza com estatutos que os ignorem. A expressão residente no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e o gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro".

André Ramos Tavares(Curso de direito constitucional. 4ª ed rev. e atual São Paulo Saraiva, 2006, p 444) chega a apontar a existência de quatro diferentes correntes que fundamentam a inclusão do estrangeiro não-residente como titular de direitos fundamentais: "A primeira corrente é denominada 'argumento do óbvio', e simplesmente ignora o sentido gramatical mínimo das palavras do texto em análise, aduzindo que é evidente que todos estariam protegidos, inclusive o estrangeiro não-residente. A segunda corrente é denominada 'argumento dos direito naturais', segundo a qual não poderia o legislador constituinte pretender restringir certos direitos, que são inerentes ao Homem. A terceira corrente seria a do 'argumento dos direitos decorrentes', que encontra no parágrafo segundo do artigo 5º uma solução nos tratados fundamentais (boa parte do que se encontra arrolado no artigo 5º da Constituição do Brasil). Essa corrente, após a Reforma do Judiciário, promovida pela EC 45/2004, teve sua importância reforçada, pois esses direitos passaram a contar com 'estatura' constitucional, o que não lhes era reconhecido anteriormente (por força da jurisprudência do STF). A quarta corrente, do 'argumento da dignidade humana', sustenta que desse fundamento vários direitos 'tópicos' podem ser derivados, especialmente porque a dignidade é, na Constituição do Brasil, um dos fundamentos do Estado, constando do artigo 1º, III, e, nesse sentido, seu alcance é amplo e alberga os estrangeiro não residentes que estejam sob a sua jurisdição. Essa corrente deve ser, atualmente, somada à anterior, para sustentar a tutela constitucional do estrangeiro não-residente". É que, conforme o preâmbulo da Convenção Americana sobre Direito Humanos, "os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana".

5. Considerando-se, então, que a paciente é titular dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, deve ser afastado o óbice à progressão de regime, decorrente unicamente de sua condição de estrangeira, verificando-se, concretamente, se ela tem direito de ser transferida ao regime semi-aberto. Em primeiro lugar, registra-se que estão presentes os requisitos objetivo - cumprimento de mais de um sexto da pena no regime fechado, cf. fls. boletim informativo de fls. 10/2- e subjetivo, bom comportamento carcerário (fl. 9).

Em segundo lugar, verifica-se que o argumento referente ao risco de fuga é insuficiente para o indeferimento do pedido, pois não é baseado em dados concretos do processo, mas decorrente de mera presunção, que não pode sustentar o indeferimento da remoção. Assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal(STF, 2ª T , HC 74 051, rel. Min. Marco Aurélio, j. 18 06 1996, DJ 20 09 1996, trecho do acórdão) : "O problema concernente à possível evasão do território nacional é simplesmente de polícia, cabendo ao Estado precatar-se a respeito. Enquanto ciência, em Direito o meio justifica o fim, mas não este aquele, sendo extravagante, frente à fundamentação lançada, manter-se o Paciente sob a custódia do Estado (...)". No mesmo sentido, decisão deste Tribunal: "Não se pode negar a progressão de regime prisional a condenado estrangeiro sob fundamentação de que, em regime mais favorável, empreenderá eventual fuga. O artigo 5º da CF garante a igualdade perante a lei sem distinção de qualquer natureza, sejam brasileiros ou estrangeiros residentes no País(TJSP, Agr. em Execução, rel. Des. Ângelo Gallucci, RT 657/281 in Alberto Silva Franco e Rui Stoco(coord) Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial 2ª ed .rev.atual e ampl. São Paulo RT, 2004, p 365).".

De outro lado, a vedação ao exercício de atividade remunerada pelo estrangeiro imposta pelo artigo 98 da Lei nº 6.815/90 também é inaplicável no caso, tendo em vista a peculiaridade da situação da agravante no país, que decorre de sua submissão à função punitiva estatal. A atividade laborativa a ser desenvolvida pela condenada no regime semi-aberto é parte integrante da execução individualizada de sua pena, tem finalidade educativa e produtiva, e visa o cumprimento de seus objetivos ressocializadores (cf. artigo 38 da LEP), não sendo abrangida pela limitação imposta no Estatuto do Estrangeiro. Isso porque ao princípio constitucional da individualização da pena deve ser dada a máxima concretização possível para que esta -a sanção criminal - atinja suas finalidades. Na lição de Luis Roberto Barroso(Interpretação e aplicação da Constituição fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora São Paulo Saraiva, 2004, p 374): "o intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não-auto-aplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador".

6. Conclui-se, portanto, que não há impedimento legal ao deferimento da progressão de regime para estrangeiros, "primeiro, porque a Lei de Execução Penal não faz diferença entre a nacionalidade dos sentenciados para conferir os direitos que elenca. Depois, porque se houvesse esta odiosa distinção entre condenados brasileiros e estrangeiros, no mínimo, haveria ofensa ao princípio da isonomia jurídica, que assegura a todos um tratamento igual perante a lei (artigo 5º, caput, da Constituição Federal)"(Alberto Zacharias Toron O condenado estrangeiro e a progressão do regime prisional Boletim IBCCRIM São Paulo, v 7, n 81, p. 11-12, ago 1999).

7. Importa observar, ainda, que a impossibilidade de deferimento de progressão de regime ao estrangeiro é entendimento que se firmou na doutrina e jurisprudência nacional com base em um argumento simplista: ao Brasil não interessaria a ressocialização do estrangeiro, que, tão logo cumprida a pena imposta, seria expulso do país.

A tomar essa premissa como base, seria autorizada hipótese em que a pena cumpriria uma única finalidade: a retribuição pelo mal praticado, o que é incompatível com o nosso sistema penal, pautado no princípio da dignidade humana.

Com efeito, como ensina a doutrina, dar a pena uma função unicamente retributiva é atribuir-lhe um caráter absoluto, "desligado de quaisquer fins, extrai-se que na teoria retributiva a aplicação da pena tem a exclusiva função de compensar, contrabalançar a culpa. Dessa forma, e sendo inegável que na teoria retributiva há verdadeira confusão entre direito e moral, ela caracteriza violência à dignidade humana, na medida em que prioriza a satisfação da generalidade em detrimento do indivíduo. Conclui-se com Roxin que a diferença entre retribuição e prevenção 'está em que a retribuição serve apenas à idéia de Justiça e abstrai de todos os fins sociais, enquanto que as doutrinas preventivas, pelo contrário, prosseguem exclusivamente fins sociais, quer se vejam estes na integração social do agente, na intimação dele, na segurança da sociedade perante ele ou na actuação sobre a generalidade das pessoas'. Assim, só as teorias relativas são compatíveis com um Estado que tem por função preservar o indivíduo de intromissões em sua esfera íntima, em sua liberdade e personalidade, e garantir o convívio social pacífico. Mais detalhadamente, explica Ferrajoli que, em razão de ser o Estado de direito laico e liberal, o direito e o Estado 'não só não possuem nem encaram valores meramente enquanto tais, senão que tampouco devem ter fins morais desvinculados dos interesses das pessoas e menos ainda ser fins em si mesmos, justificando-se só pelo conteúdo de perseguir fins de utilidade concreta em favor dos cidadãos e principalmente de garantir seus direitos e sua segurança'"(Carmen Silvia de Moraes Barros. A individualização da Pena na Execução Penal São Paulo)

Ademais, é sempre necessário ter em mente que o artigo 1º da Lei de Execução Penal preceitua que "a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado", não fazendo qualquer distinção entre nacionais e estrangeiros. Acrescenta, ainda, em seu artigo 3º que "ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política".

Independentemente, pois, de qualquer característica pessoal, de distinções baseadas no local de nascimento, o que se busca é a integração social do indivíduo apenado, afastando-se qualquer entendimento que permita o tratamento da pessoa como mero objeto da intervenção penal, sem quaisquer direitos ou garantias, impossibilitando qualquer medida de individualização da pena.

Não é demais ressaltar, ainda, que é questionável a "falta de interesse" do país em promover a reintegração social do estrangeiro: em um mundo globalizado, em que a idéia de fronteiras não mais reflete a separação absoluta dos Estados nacionais, é um contra-senso afirmar que a única preocupação que concerne ao Poder Público é a satisfação exclusiva dos interesses e bem estar de seus nacionais, sob pena de retrocesso na evolução mundial tendente a integração política, econômica e social, que tem ganhado cada vez mais espaço desde o final do Século XX.

8. Destaque-se, finalmente, que permitir a interpretação restritiva aos direitos dos sentenciados estrangeiros seria criar uma hipótese de regime integral fechado não prevista em qualquer diploma legal. Se, antes, esse sistema era permitido pela Lei 8.072/90, verdade é que ele foi objeto de inúmeras críticas, havendo o reconhecimento de sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e, por fim, sua revogação pela Lei 11.464/07.

Portanto, não mais subsistindo essa forma de cumprimento de pena e, se nem a Constituição Federal e nem a Lei, no âmbito da execução penal, fazem qualquer distinção entre nacionais e estrangeiros, não é possível ao intérprete restringir a liberdade individual com base em entendimento, de todo, ultrapassado.

9. Assim se manifestou recentemente o Superior Tribunal de Justiça(STJ, 6ª T, HC 103 373, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 26.08.2008, Dje 19.09.2008): "Processual penal. Execução penal. Habeas corpus. Estrangeiro não-residente no país. Progressão de regime prisional. Possibilidade. Tanto a execução penal do nacional quanto a do estrangeiro submetem-se aos cânones constitucionais da isonomia e da individualização da pena. Não se admite, após a nova ordem constitucional inaugurada em 1988, a remissão a julgados que se reportam a comandos com ela incompatíveis. A disciplina do trabalho no Estatuto do Estrangeiro não se presta a afastar o co-respectivo direito-dever do condenado no seio da execução penal. Ordem concedida". Igualmente: "Negar o livramento condicional ao condenado estrangeiro em situação irregular no país, pelo simples fato de estar impedido de exercer atividade remunerada no mercado formal, impõe condição discriminatória que veda a concessão do benefício apenas por sua própria condição pessoal. A lei penal não exige que o condenado estrangeiro tenha uma promessa efetiva de emprego, com carteira registrada, mas sim que tenha condição de exercer qualquer trabalho honesto e lícito para prover sua subsistência e de sua família, ainda que na informalidade da qual sobrevive expressiva parte da população brasileira"(STJ, 5ª T , REsp 662 567, rel. Min. Laurita Vaz, j. 23 08 2005, DJ 26 09 2005, p 441)

10. Ante o exposto, concedem a ordem para progredir Maria Magdalena Smith ao regime semi-aberto.

Márcio Bartoli
Relator




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