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sexta-feira, 31 de julho de 2009

JURID - Denúncia rejeitada. Crime de bagatela. [31/07/09] - Jurisprudência


Acusação de furto de creme fixador de dentaduras, devolvido à vítima. Denúncia rejeitada. Crime de bagatela. Princípio da ofensividade. Reconhecimento.


Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS.

Apelação Crime Nº 70025444209

Sexta Câmara Criminal

Comarca de Palmeira das Missões

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO

APELADO: PRICILA PEREIRA DA SILVA

APELADO: JULIANA MARQUES

APELADO: DEBORA APARECIDA DOS SANTOS

ACUSAÇÃO DE FURTO DE CREME FIXADOR DE DENTADURAS, DEVOLVIDO À VÍTIMA. DENÚNCIA REJEITADA. CRIME DE BAGATELA. PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE. RECONHECIMENTO.

No caso concreto, o valor dos objetos subtraídos, a restituição destes à vítima, bem como as condições desta (um estabelecimento comercial), indicam a ocorrência da insignificância, de tal maneira a afastar a necessidade da intervenção penal do Estado, pois a infração penal não é mera violação da norma, mas há de ser concebida numa perspectiva de resultado e de relevância à ofensa ao bem jurídico protegido.

APELO MINISTERIAL DESPROVIDO.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sexta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao apelo do Ministério Público.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. ARAMIS NASSIF E DES. CARLOS ALBERTO ETCHEVERRY.

Porto Alegre, 25 de junho de 2009.

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI, Relator.

RELATÓRIO

Des. Nereu José Giacomolli (RELATOR)

O MINISTÉRIO Público ofereceu denúncia contra PRICILA PEREIRA DA SILVA, DÉBORA APARECIDA DOS SANTOS e JULIANA MARQUES, dando-as como incursas nas sanções do artigo 155, § 4º, IV, do Código Penal, pela prática do seguinte fato delituoso:

No dia 19 de julho de 2006, por volta das 14h45min, na Avenida Independência, n. 1327, na Farmácia Cruz Azul, na cidade de Palmeira das Missões, as denunciadas PRICILA DA SILVA, DÉBORA APARECIDA DOS SANTOS e JULIANA MARQUES, em comunhão de vontades e conjunção de esforços, subtraíram, para si: 02 (dois) fixadores de dentadura, marca Ultra Corega, avaliados, cada um, em R$ 22,11 (vinte e dois reais e onze centavos) e 01 (um) creme fixador de dentadura marca, Ultra Corega, avaliado em R$ 44,30 (quarenta e quatro reais e trinta centavos) - auto de apreensão, fl. 21, e auto de restituição, fl. 22, pertencentes à farmácia Cruz Azul.

Na ocasião, as denunciadas entraram na farmácia e passaram a olhar os produtos. Ato contínuo, para desviar a atenção do atendente, Pricila perguntou o preço de um medicamento enquanto outra das denunciadas pediu um copo de água. Nesse momento, a denunciada Débora pegou os objetos e os colocou em sua bolsa, sendo acobertada por Juliana, que usava seu corpo para esconder sua comparsa.

A denúncia foi rejeitada em face do reconhecimento da irrelevância da conduta, a desvalia do comportamento e da insignificância da ação, aplicando o princípio da bagatela criminal (fls. 63 a 66).

Inconformado, o Ministério Público apelou (fl. 67). Em razões, postulou a modificação da decisão de primeiro grau, determinando o recebimento da denúncia (fls. 68 a 76).

Ofertadas as contrarrazões (fls. 233 a 237), subiram os autos.

Nesta instância, a Procuradora de Justiça opinou pelo conhecimento e provimento do recurso ministerial (fls. 239 a 242).

É o relatório.

VOTOS

Des. Nereu José Giacomolli (RELATOR)

Eminentes Colegas:

Cuida-se de recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, pois inconformado com a decisão de rejeição da peça acusatória.

Trata-se de denúncia oferecida contra as acusadas, porque, em tese, teriam subtraído 02 pós e 01 creme fixador de dentaduras, todos da marca Ultra Corega, perfazendo um total de R$ 88,52 (oitenta e oito reais e cinquenta e dois centavos).

Não houve prejuízo, pois os objetos foram integralmente restituídos à vítima (fl. 26).

Estou mantendo a rejeição da denúncia, em razão da insignificância, de sorte que resta desprovido o recurso do Ministério Público.

A aplicação do princípio da insignificância, como excludente de tipificação ou de ilicitude, além do valor da res furtiva, deve considerar as circunstâncias do fato, a conduta do autor, o dano causado à vítima e as condições do réu.

Ocorre que a situação concreta deve ser enfrentada do ponto de vista da ofensa ao bem jurídico.

O Direito Penal de um Estado Democrático e Constitucional de Direito, estruturado no respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) ultrapassa as barreiras dogmático-formais subjetivas e se insere na concepção objetiva substancial do Direito Penal. Dentro desta perspectiva, é de suma importância o bem jurídico protegido; não a norma em si, mas o que a norma visa tutelar.

A infração penal não é mera violação da norma. É mais que isto, é violação do bem jurídico, numa perspectiva de resultado e de relevância da ofensa ao bem jurídico protegido.

Um fato - furto -, embora reconhecido pelo legislador como delito - está tipificado e inexiste norma geral a respeito da ofensividade - , merece uma exegese valorativa do ponto de vista do bem jurídico tutelado, o qual integra a própria previsão abstrata, mais precisamente, se houve relevância ofensiva ao bem jurídico, examinando-se as conseqüências jurídicas.

A ofensividade ao bem jurídico protegido merece uma disposição geral expressa no Código Penal, limitador da tipicidade abstrata, e uma constitucional, limitadora do próprio poder legiferante. Quiçá, com isso, se evitaria a inflação de tipos penais, também causadora da demanda processual criminal; da concepção de que o Direito Penal se presta para a solução de todos os males da sociedade atual, da incompetência política, econômica e social.

A tutela ao bem jurídico há de ser averiguada do ponto de vista positivo, ou seja, de que somente há transgressão da norma quando efetivamente existe um ataque ofensivo ao valor tutelado.

Afastada a efetiva ofensa ao bem jurídico, o tipo penal abstrato não se perfectibiliza no plano concreto da realidade da vida.

Alterações normativas não têm o condão de concretizar um dano ao autor do fato com a imposição de uma pena. Raciocínios, inclusive lógico-formais, são empregados de forma "apropriada", sempre em prejuízo do réu.

O princípio da ofensividade ao bem jurídico, como afirma LUIZ FLÁVIO GOMES (Princípio da Ofensividade no Direito Penal, p. 25), há de ser instrumentalizado e tornado efetivo, sob pena de se ter um discurso liberal e uma aplicação autoritária do Direito Penal.

Como bem ensina CARBONELL MATEU (Derecho Penal: Concepto y principios constitucionales, 1999, p. 215 a 218), o princípio da ofesividade ou lesividade exige que não haja crime sem lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico, dentro de um critério valorativo que a norma comporta. Mais, num Estado social e democrático de Direito, a intervenção punitiva somente se justifica nas condutas transcendentes aos demais que atinjam as esferas de liberdade alheias, sendo contrário ao princípio de ofensividade o castigo de uma conduta imoral, antiética ou antiestética que não invadam a liberdade alheia. Ainda, este princípio descansa na consideração do crime como um ato desvalorado, isto é, contrário à norma de valoração.

No mesmo sentido, PALAZZO (Valores Constitucionais e Direito Penal, 1989, p. 79 a 84) preconiza que o princípio da ofensividade informa que o fato não constitui um ilícito se não for lesivo ou perigoso ao bem jurídico tutelado.

Também FERRAJOLI (Derecho y Razón, 1997, p. 464 a 467) ensina que somente os efeitos lesivos justificam a proibição e a pena. Este princípio surge já em Aristóteles e Epicerro e domina toda a cultura penal ilustrada: de Hobbes, Prefendorf e Locke a Beccaria, Hommel, Bentham, Pagano e Romagnosi, os quais observam que os danos causados a terceiros são a razão, o critério e a medida das proibições e das penas. O bem jurídico implica uma valoração para sabermos se deve haver ou não tutela penal.

O tipo penal é como uma pedra bruta que necessita ser lapidada, burilada, integrada com elementos externos ao abstrativismo, tomados do plano objetivo. Só assim é que podemos conceber a formação de um suporte válido, suficiente e real à aplicação da sanção criminal.

A adoção deste princípio implica que se investigue o conteúdo material do tipo penal, isto é, se a conduta se revestiu de entidade suficiente a lesar o bem jurídico. A proteção do bem jurídico e a ofensividade se conectam e se constituem em pilares de sustentação de um Direito Penal voltado à satisfação dos interesses sociais atuais. O que deve ser protegido pela norma penal - bem da vida determinado, ou bem jurídico-, apenas informa o Direito Penal do bem jurídico, não sendo suficiente para determinar se há delito, mais precisamente, se a previsão abstrata se concretiza, isto é, se ocorreu uma lesão ou perigo concreto ao valor cultural protegido - ofensividade. Não há crime sem uma real ofensa ao bem jurídico, materializada no brocardo nullum crimen sine iniuria.

Destarte, quando não há ofensa ao bem jurídico protegido, não há fato típico, eis que a previsão abstrata não se concretiza.

Do fundamento da dignidade humana, que inspirou a nossa Constituição (art. 1°, III), se extrai o princípio da ofensividade. Fere a dignidade humana a condenação por um fato que não lesa, de forma concreta, o bem jurídico eleito, como a aplicação de uma sanção criminal se não houve relevância no ataque. A ausência de ataque não autoriza a reação punitiva, sob pena do ser humano ser considerado mero objeto.

Além do fundamento constitucional, o princípio da ofensividade se extrai do artigo 13 do Código Penal: "o resultado de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido". A nossa sistemática típica preconiza resultados naturalísticos e formais, mas as duas espécies de resultado são relevantes somente quando ofendem o bem jurídico, isto é, quando houver lesão ou perigo concreto de lesão.

Compete ao magistrado, diante da situação concreta que lhe é submetida, avaliar se houve ou não ofensa ao bem jurídico. Portanto, há que se fazer um juízo valorativo.

Voltamos ao caso dos autos. As imputadas têm 24, 27 e 30 anos de idade, sem antecedentes criminais, a vítima é uma farmácia e os objetos subtraídos foram todos devolvidos. O valor sócio-cultural protegido é o patrimônio. Houve uma ofensa relevante à vítima, a tal ponto de haver ofensa ao bem jurídico? Um juízo valorativo informa que, em casos tais, onde não houve violência, em que os objetos são de valores insignificantes -total de oitenta e oito reais e cinquenta e dois centavos -, bem como as circunstâncias da subtração, não houve ofensa suficiente ao bem jurídico patrimônio, de molde a aplicar-se uma sanção penal.

Ausente a ofensa relevante ao bem jurídico, possível é o abortamento do processo, já na fase de recebimento da peça incoativa.

Pelo exposto, nego provimento ao recurso do Ministério Público, mantida a decisão recorrida.

Des. Carlos Alberto Etcheverry (REVISOR) - De acordo.

Des. Aramis Nassif - De acordo.

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI - Presidente - Apelação Crime nº 70025444209, Comarca de Palmeira das Missões: "À UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ."

Julgador(a) de 1º Grau: ALESSANDRA COUTO DE OLIVEIRA

Publicado em 13/07/09




JURID - Denúncia rejeitada. Crime de bagatela. [31/07/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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