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sexta-feira, 3 de julho de 2009

JURID - Ação civil publica. MPFxINCRA. [03/07/09] - Jurisprudência


Ação civil publica. MPFxINCRA. Curso de Graduação em Direito para os beneficiários da reforma agrária e seus familiares.


PODER JUDICIÁRIO - JUSTIÇA FEDERAL
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE GOIÁS
NONA VARA

Estatística: Sentença Tipo "A"

Processo: 2008.35.00.013973-0

Classe: 7100

Ação: AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Requerente: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

Requerido(s): INCRA - INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA E OUTRO

SENTENÇA

Trata-se de ação civil pública proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face do INCRA - INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA e UFG - UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS, com pedido de antecipação de tutela, na qual se insurge contra o curso de graduação de Direito para os beneficiários da reforma agrária e seus familiares.

Alega a parte requerente que os requeridos firmaram termo de cooperação técnica, mediante a Portaria Conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG n° 9, de 17/08/2007, par a criação de curso de graduação de Direito destinado a beneficiários da reforma agrária, sendo o custeio realizado através do PRONERA - Programa Nacional de Educação de Jovens e Adultos e que posteriormente foi aberta a inscrição para o processo seletivo do referido curso, sendo que o mesmo já havia sido referendado pelo Ministério da Educação, de forma negativa, em face da realização de vestibular restrito a determinada classe.

Afirma que o curso encontra-se em pleno funcionamento e que se trata de uma afronta ao princípio constitucional da igualdade material.

Aduz que além do tratamento diferenciado ao referido grupo social, verifica-se a impossibilidade da utilização do PRONERA para o custeio do já mencionado curso, eis que tais recursos, apesar de poderem ser destinados à educação dos beneficiários da reforma agrária, devem se restringir à qualificação dos mesmos para o trabalho, sendo que o curso de Direito não está atrelado à qualificação rural e, portanto, destoa de sua finalidade.

Assevera que dessa forma restaria configurado o desvio de finalidade no emprego dos recursos do PRONERA, eis que lesaria o patrimônio social e que não há previsão legal de tratamento diferenciado aos beneficiários da reforma agrária, ferindo evidentemente o princípio da igualdade, bem como o da legalidade, isonomia e razoabilidade no direito brasileiro.

Conclui afirmando que a criação da "Turma especial de graduação em Direito para beneficiários da reforma agrária" sob a roupagem artificiosa de ação afirmativa é uma afronta aos princípios constitucionais elencados no ordenamento pátrio, eis que se trata de desvio de finalidade e malversação de recursos públicos.

Ao final, formulou pedido de julgamento da lide com resolução de mérito, nos seguintes termos:

a) reconhecimento da impossibilidade de utilização de recursos do PRONERA para custeio de curso superior em área de conhecimento que não se mostre evidentemente ligada aos fins colimados pela reforma agrária, e via de conseqüência, declarando-se a ilegalidade da Portaria Conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007;

b) reconhecimento da injuridicidade ab ovo da criação do curso de graduação em Direito para os beneficiários da reforma agrária e seus filhos, e, via de conseqüência, determinando-se a extinção do mesmo;

c) seja determinado à Universidade Federal de Goiás que se abstenha de criar curso de ensino superior que tenha forma de ingresso diversa da aprovação em vestibular aberto a todos que preencham as condicionantes legais.

Juntou documentos às fls. 29-193.

A apreciação do pedido de liminar foi deixada para após o estabelecimento do contraditório mínimo (fl. 195).

O INCRA, por meio da petição de fls. 199-215, informou que há diversas manifestações favoráveis no sentido da regularidade e constitucionalidade do curso em debate, e que elaborou a Portaria/Incra/P/n° 282, de 16/04/2004, salientando que um dos objetivos da reforma agrária seria proporcionar educação aos assentados em curso superior em diversas áreas do conhecimento e que os recursos do PRONERA podem e devem ser utilizados na educação e não tratam-se de um privilégio, mas sim de uma política pública, justificada em razão da desigualdade.

Elucida que o Direito Agrário é fundamental e essencial para amenizar os conflitos no campo e construir uma reforma agrária ordeira, pacífica e dentro da lei e que acaso os beneficiários da reforma agrária sejam operadores do direito, tornar-se-á um ramo do Direito com mais respaldo, e que cumpre com os preceitos do Estado Democrático de Direito e que, portanto, está relacionado com a manutenção do homem no campo. Assegura que os recursos do Programa 1350 - Educação do Campo e sua ação 8633 - Formação de Profissionais de Nível Superior adaptados a Reforma Agrária e Agricultura Familiar estão respaldados na Lei n° 11.306, de 16/05/2006 (LOA) e no PPA 2004/2007 - Lei n° 10.933, de 11/08/2004 e que os recursos são destinados mediante realização de convênio do INCRA, que se incumbe de gerir, acompanhar, monitorar e avaliar os mesmos.

Pondera, por fim, que o referido termo de cooperação, firmado através da Portaria Conjunta/INCRA/P/INCRA/SR(04)Go/UFG/n° 9, de 17/08/2007, não está eivado de ilegalidade/inconstitucionalidade e que não fere os princípios constitucionais, eis que o referido curso está legitimado pelo princípio da isonomia, que afirma dar tratamento igualitário aos que se encontram em situação de igualdade e o tratamento desigual daqueles que se encontram em situação desfavorável e que portanto, o curso nada mais é do que uma forma de se efetivar o Direito Agrário Constitucional em conjunto com o Estado Democrático de Direito, imposto pela Constituição Federal.

Juntou documentos às fls. 216-270.

A UFG, às fls. 271-296, informa haver ausência da prova inequívoca e da verossimilhança da alegação, face ao arquivamento do inquérito civil público nº 1.18.00.008340/2006-92, eis que tanto a Procuradoria da República no Estado de Goiás, como a Subprocuradoria-Geral da República, concluíram pelo reconhecimento e legalidade da criação do curso de direito para beneficiários da reforma agrária, haja vista que a subsunção conceitual à ação afirmativa, o acerto na escolha do elemento discriminatório, a não arregimentação ideológica e a adequação ao princípio da proporcionalidade - fato este comprovado pelas alegações e justificativas de arquivamento do referido inquérito civil público.

Ressalta os julgados do TRF 1ª e 5ª Região e do STJ, validando as ações afirmativas na área de educação para grupos sociais e aduz estar descaracterizado o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação em decorrência do transcurso de tempo entre o início das aulas - agosto de 2007 - e a propositura da presente ação - junho de 2008.

Por fim, salienta que a suspensão do curso acarretaria diversos prejuízos aos alunos, tendo em vista a disponibilidade dos horários dos professores, bem como o comprometimento da qualidade do aprendizado.

Juntou documentos às fls. 297-2039.

Às fls. 2.041-2.050 foi indeferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela formulado pelo Ministério Público Federal.

O Ministério Público Federal comunicou a interposição de Agravo de Instrumento perante o TRF/1ª Região e pediu a retratação da decisão (fls. 2.052-2.069).

A decisão agravada foi mantida por seus próprios fundamentos (fl. 2.071).

Em contestação, às fls. 2.073-2.092, a UFG sustenta que o Ministério Público Federal do Estado de Goiás, ao determinar o arquivamento do Inquérito Civil Público 1.18.000.008340/2006-92, concluiu pela legalidade da criação do curso de direito para os beneficiários da reforma agrária e pela possibilidade jurídica da utilização dos recursos do PRONERA para custeio do curso em questão.

Assevera que a decisão foi confirmada pela Subprocuradoria-Geral da República, sendo que a propositura de ação civil por um membro do MPF constitui-se em afronta à decisão de arquivamento do órgão superior, nos termos do § 3º do art. 9º da Lei 7.347/85.

Ressalta que as Universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e que a intervenção do judiciário, na forma pretendida pelo requerente, implicaria em interferência na competência conferida à autoridade administrativa, sob o critério da discricionariedade, para atingir determinado fim sem se submeter a comando de terceiros.

Acrescenta que há nexo de causalidade a justificar a criação de curso de direito direcionado exclusivamente aos beneficiários da reforma agrária e seus familiares.

O INCRA, em contestação, às fls. 2.100-2.127, defende que o curso em espeque, como ação afirmativa, seja da UFG, seja do INCRA, está legitimado pelo princípio da isonomia.

Aduz que o termo de cooperação técnico-orçamentária firmado através da Portaria Conjunta/INCRA/P/INCRA/SR(04)Go/UFG/n° 9, de 17/08/2007, entre o INCRA e a UFG, visa defender a dignidade humana e os direitos inerentes à cidadania dos assentados, ambos em situação de déficit notório, não por responsabilidade nem culpa deles.

Segundo o réu, ainda no que diz respeito ao termo de cooperação técnico-orçamentária, acima mencionado, não há sinais de inconstitucionalidade e ilegalidade, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo.

Impugnação às contestações (fls. 2.274-2.279).

As partes não especificaram provas.

É o relatório.

FUNDAMENTAÇÃO

Preliminarmente

A Universidade Federal de Goiás sustenta que a propositura de ação civil pública, pelo Ministério Público Federal, após confirmação pela Subprocuradoria-Geral da República da decisão de arquivamento do inquérito civil público instaurado pelo mesmo órgão, viola a decisão de arquivamento, nos termos do § 3º do art. 9º da Lei 7.347/85.

Sem razão, contudo.

O art. 9º da Lei nº 7.347/85 regula o procedimento a ser seguido pelo Ministério Público em caso de conclusão pela inexistência de fundamento para a propositura de ação civil pública.

Não afasta, todavia, o direito de ação conferido ao órgão para promover ação civil pública, diante da independência funcional de que são dotados os órgãos do ministério público, consoante disposto no art. 4º da Lei complementar 75/93, que dispõe:

Art. 4º São princípios institucionais do Ministério Público da União a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

Ademais, como a instauração de inquérito civil público não é condição indispensável para a propositura de ação civil pública, seu arquivamento não impede que qualquer outro legitimado, mesmo que integrante da mesma carreira, promova a ação caso entenda existir fundamento para a propositura.

Sobre a facultatividade da instauração de inquérito civil público o § 1º, do art. 8º da lei nº 7.347/85 é esclarecedor ao estabelecer que:

Art. 8º.

§ 1º O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil, ou requisitar, de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações, exames ou perícias, no prazo que assinalar, o qual não poderá ser inferior a 10 (dez) dias úteis. (grifei)

Assim, plenamente possível e aceitável que sob o fundamento da existência de novos fatos o i. Membro do Parquet Federal promova o desarquivamento dos autos de inquérito civil público e no exercício da independência funcional conclua em sentido diverso daquele verificado anteriormente, promovendo assim ação civil pública em defesa do patrimônio público.

Finalmente, há de se ressaltar que na espécie deve sobressair a interpretação que assegure o mais amplo controle dos atos da administração pública, possibilitando a apreciação pelo judiciário da conformidade de tais atos com a Constituição Federal e com as leis vigentes.

Rejeito, portanto a preliminar argüida pela Universidade Federal de Goiás.

Mérito

O Ministério Público Federal se insurge, inicialmente, contra a utilização de recursos do PRONERA para custeio de curso superior em área de conhecimento desvinculado das finalidades da reforma agrária, postulando a declaração de ilegalidade da portaria conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007.

O PRONERA foi instituído pelo Ministério extraordinário de política fundiária, por meio da portaria nº 10, de 16/04/1998, com o objetivo traçado no item I, cujo teor transcrevo a seguir:

I - Instituir, no âmbito do Gabinete do Ministro, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA com o objetivo de fortalecer a Educação nos Assentamentos de Reforma Agrária, utilizando metodologias específicas para o campo, que contribuam para o desenvolvimento rural sustentável do assentamento;

Para cumprir tal desiderato o INCRA estabeleceu, através da portaria conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007, cooperação técnica - orçamentária com a Universidade Federal de Goiás, com a finalidade de "implementação de Curso de Graduação em Direito na Ação de Formação de Profissionais de Nível Superior adaptados à Reforma Agrária do Programa Nacional de Educação de Jovens e Adultos - PRONERA".

Estabelece, ainda, referida portaria conjunta que os recursos necessários para a execução "correrão à conta do orçamento do INCRA, para pagamento das despesas decorrentes dos serviços executados".

A finalidade do acordo de cooperação, contudo, não se coaduna com o objetivo institucional do PRONERA e não atende aos postulados da reforma agrária.

Com efeito, como transcrito acima, o PRONERA foi criado "com o objetivo de fortalecer a Educação nos Assentamentos de Reforma Agrária, utilizando metodologias específicas para o campo, que contribuam para o desenvolvimento rural sustentável do assentamento", e tal propósito não pode ser alcançado através do curso de graduação em direito, pois o mister do bacharel em direito não é desenvolvido no campo e não tem qualquer relação com a atividade ali desenvolvida, senão reflexamente, como qualquer outro labor profissional, como medicina, odontologia ou engenharia civil, dentre diversas áreas do conhecimento.

De fato, o argumento de que o direito versa sobre as lides fundiárias denota o caráter reflexo que tal conhecimento tem em relação ao labor rural.

Da simples leitura dos termos justificadores da criação do PRONERA, aliado aos propósitos da reforma agrária de fixação do homem no campo, verifica-se que há efetivo desvio de finalidade do programa ao empregar recursos públicos para subsidiar a formação jurídica dos assentados e filhos de assentados.

Portanto, não obstante se reconheça que a educação do homem do campo é indispensável para garantir o desenvolvimento sustentável dos assentamentos, conferindo êxito ao programa de reforma agrária, tal fato não autoriza a utilização de recursos públicos em total afronta aos objetivos que fundamentam a distribuição de terras aos pequenos agricultores desprovidos do principal instrumento de produção, a terra.

É a fixação do homem no campo com condições de sobrevivência e desenvolvimento que valida a desapropriação e transferência de terras aos assentados, e tal objetivo sequer tangencia com a formação técnico/jurídica que se pretende conferir aos assentados com a criação do curso de direito pelo INCRA/UFG.

Dessa forma, há evidente desvio de finalidade e, por conseqüência, flagrante ilegalidade no convênio estabelecido através da Portaria Conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007 para utilização de recursos do PRONERA no custeio de curso superior em direito.

Das políticas afirmativas

Não há que se confundir a presente controvérsia com as políticas afirmativas de reserva de vagas, seja a alunos oriundos de escolas públicas, seja a determinadas raças ou etnias.

Com efeito, não versa a presente causa sobre a reserva de determinado percentual de vagas nas universidades públicas para assentados ou seus filhos, mas a criação de curso exclusivo para tal grupamento.

As políticas afirmativas de reserva de vagas, adotadas por diversas universidades brasileiras, inclusive pela Universidade Federal de Goiás, têm merecido a acolhida dos Tribunais, conforme se pode verificar de inúmeros julgados que acolheram a tese e julgaram pela constitucionalidade do sistema de cotas nas universidades.

A título ilustrativo cito o brilhante acórdão da lavra da eminente Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida:

CONSTITUCIONAL. ENSINO SUPERIOR PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA RESERVA DE VAGAS (COTAS) PARA ESTUDANTES EGRESSOS DA REDE PÚBLICA DE ENSINO. LEGITIMIDADE ATIVA DO PARQUET PARA PROPOR AÇÕES COLETIVAS NA DEFESA DOS INTERESSES SOCIAIS E INDIVIDUAIS INDISPONÍVEIS (CF ART. 127). LEGITIMIDADE PASSIVA DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS. MÉRITO ACADÊMICO E ISONOMIA. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.

(...)

9. Dispõem o art. 206, inciso I, da Constituição da República e o artigo 3º, incisos VI e IX, da Lei de Diretrizes e Bases que o ensino será ministrado com base nos princípios de igualdade de condições para acesso e permanência na escola.

10. A maioria dos alunos que concluem o ensino médio no Estado de Minas Gerais são egressos da rede de ensino pública, na proporção de quatro estudantes provenientes da escola pública para cada aluno egresso da rede de ensino médio privada.

11. A questão da democratização do acesso ao terceiro grau tem a ver com o número crescente da procura de vagas por parte de jovens egressos das escolas públicas de segundo grau que não têm condições de concorrer em nível de conhecimento com alunos que cursaram o ensino médio na rede privada em melhor qualidade acadêmica.

12. É notória a insuficiência de vagas nas universidades públicas; e o processo de privatização acelerado que o ensino superior está passando não atende às necessidades dos alunos de baixa renda que não podem pagar mensalidades.

13. Alguns fatores que conduzem à dificuldade de acesso de alunos da rede pública de ensino a terem pouca ou nenhuma oportunidade de ingressaram no nível superior são a deficiente qualidade do ensino médio, a ausência de incentivo familiar e da sociedade, a necessidade de ingressar no mercado de trabalho e a concorrência dos estudantes intelectualmente mais preparados da rede de ensino privada.

14. As enormes deficiências do ensino fundamental e médio da escola pública fazem com que os alunos de menor renda fiquem sub-representados na universidade pública. Somente 20% dos que iniciaram os estudos de segundo grau na rede pública concluem o curso.

15. A qualidade do ensino ministrado influi na possibilidade de se competir no mercado de trabalho. As insuficiências do ensino público de primeiro e segundo graus ministrados aos segmentos mais pobres da sociedade brasileira fazem com que seja menor a possibilidade de ascensão social.

16. O desaparecimento de níveis de desigualdade intoleráveis no acesso à sociedade do conhecimento não se dará pelo livre funcionamento do mercado. Políticas universais de desenvolvimento em países de passado caracterizado por desníveis sociais e econômicos profundos só logram êxito de fazer desaparecer as desigualdades em longuíssimo tempo. Daí a necessidade de ações específicas para determinados grupos estigmatizados e marginalizados.

17. Os atuais métodos de seleção de candidatos ao ensino superior público fazem com que o Estado favoreça os que têm em detrimento dos que não têm recursos.

18. O país não dispõe de recursos orçamentários para o ensino obrigatório (de qualidade ou não) dos sete aos quatorze anos e não há perspectiva alguma de se alterar a distribuição do orçamento para implementar a universalização do ensino de primeiro e segundo graus de qualidade.

19. As práticas institucionais dos órgãos do Estado permitem métodos excludentes. A má qualidade do sistema de educação prestada a grupos de crianças carentes não causa clamor público em virtude de ausência de cidadania simbólica (direito de ter direito) de que são acometidos certos segmentos da população.

20. O acesso exclusivo do aluno ao terceiro grau mediante o concurso vestibular é um instrumento que avalia a capacitação intelectual dos iguais. A ausência de outros critérios de avaliação que não o somatório de notas no referido exame produz a igualdade dos iguais.

21. A igualdade formal padece de limitações enquanto a igualdade material pressupõe a distribuição desigual de oportunidades para que os desfavorecidos obtenham um nivelamento de oportunidade. O princípio da igualdade material insere-se na Constituição nas normas programáticas que objetivam conceder direitos àqueles que não usufruem dos bens da vida.

22. Descumprindo o Estado o princípio de igualdade de condições (igualdade material ou substancial) em relação aos desiguais de escola pública, há que se promover uma desigualdade positiva para o efeito de obter a igualação jurídica real.


23. A ordem constituída é mais que uma ordem legitimada pelos fatos. Assenta-se a ordem jurídica na consciência de que não será eficaz sem o concurso da vontade. As normas programáticas adquirem vigência por meio de atos da vontade humana.

24. "Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitivo, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas - isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e de mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido - o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito". (Joaquim B. B. Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da igualdade. Rio, Renovar, 2001, p. 40-A.)

25. "A definição jurídica objetiva e racional da desigualdade dos desiguais, histórica e culturalmente discriminados, é concebida como uma forma para se promover a igualdade daqueles que foram e são marginalizados por preconceitos encravados na cultura dominante na sociedade. Por esta desigualação positiva promove-se a igualação jurídica efetiva; por ela afirma-se uma fórmula jurídica para se provocar uma efetiva igualação social, política, econômica no e segundo o Direito, tal como assegurado formal e materialmente no sistema constitucional democrático. A ação afirmativa é, então, uma forma jurídica para se superar o isolamento ou a diminuição social a que se acham sujeitas as minorias". Criação que refletiria uma "mudança comportamental dos juízes constitucionais de todo o mundo democrático do pósguerra", que estariam mais conscientes da necessidade de uma "transformação na forma de se conceberem e aplicarem os direitos, especialmente aqueles listados entre os fundamentais. Não bastavam as letras formalizadoras das garantias prometidas; era imprescindível instrumentalizarem-se as promessas garantidas por uma atuação exigível do Estado e da sociedade. Na esteira desse pensamento, pois, é que a ação afirmativa emergiu como a face construtiva e construtora do novo conteúdo a ser buscado no princípio da igualdade jurídica. O Direito Constitucional, posto em aberto, mutante e mutável para se fazer permanentemente adequado às demandas sociais, não podia persistir no conceito estático de um direito de igualdade pronto, realizado segundo parâmetros históricos eventualmente ultrapassados" (idem p. 42-43).

26. As ações afirmativas de discriminação positiva são métodos para diminuir as desigualdades estruturais de grupos expostos à discriminação. Mediante ações específicas, opera-se o favorecimento de certas minorias sociais de forma que se logre a isonomia de oportunidades. Busca-se, assim, uma inclusão de indivíduos na estrutura social que de outra maneira permaneceriam excluídos.

27. As políticas compensatórias não têm por objetivo perdurar indefinidamente no tempo. São necessárias somente enquanto uma falsa estrutura de direitos formais, que favorece a apropriação e controle do acesso ao poder e aos benefícios sociais pelo grupo dominante, afasta sujeitos historicamente discriminados desses mesmos benefícios.

28. Apelações das rés improvidas.

29. Remessa parcialmente provida.

(AC 1999.38.00.036330-8/MG, Rel. Desembargadora Federal Selene Maria De Almeida, Quinta Turma, DJ de 19/04/2007, p.47) grifei

Todavia, o ponto central abordado na presente ação é diverso, pois não se discute a pertinência e validade da adoção do sistema de cotas ou de adoção de políticas afirmativas de inserção de determinado grupo desfavorecido no sistema de ensino superior, discute-se, tão somente, a validade da criação do curso de direito exclusivo para os assentados e filhos de assentados beneficiários da reforma agrária.

Da violação ao princípio da isonomia

Ainda que se reconhecesse a possibilidade de utilização de recursos do PRONERA para subsidiar a formação jurídica dos beneficiários da reforma agrária o convênio não estaria legitimado por ofensa ao princípio da igualdade. É o que passo a apreciar.

Após longo trâmite nas instâncias universitárias e contando com manifestações favoráveis do MPF e da OAB, e desfavorável do MEC, em 15/09/2006 foi criada pela Universidade Federal de Goiás a turma especial de graduação em direito para beneficiários da reforma agrária, estendida aos cidadãos beneficiados pela política nacional de agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais (lei nº 11.236, de 24 de julho de 2006), nos termos da resolução CONSUNI Nº 18/2006 (fl. 1444).

Embora seja reconhecida a autonomia didáticocientífica das universidades para a criação, ampliação ou redução do número de vagas nos cursos ministrados pelas mesmas, tais instituições não estão imunes ao regramento contido na legislação que rege a matéria, nem tampouco aos ditames contidos na Constituição Federal.

No que pertine ao tema, a Constituição Federal estabelece nos artigos 205 e 206, I, que:

"Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

(...)"

A Lei nº 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação, dispõe que:

Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

Da análise dos dispositivos acima, verifico que a destinação exclusiva das vagas na referida turma de direito aos beneficiários da reforma agrária, mesmo com a extensão aos beneficiários da lei 11.326/2006, viola o princípio constitucional da igualdade, pois adota critério que privilegia uma pequena parcela de indivíduos, excluindo outros que se encontram em situação idêntica ou inferior.

De fato, a escolha arbitrária dos destinatários das referidas vagas excluiu expressamente a possibilidade de acesso a todos os demais trabalhadores rurais não assentados ou aqueles que laboram como empregados rurais ou ainda os que estão em posição de profunda inferioridade em relação aos eleitos pela portaria conjunta que são os diaristas rurais (também denominados "boias-frias").

Assim, mesmo que se considere legítimo o discrimen que destacou os homens do campo como grupo desfavorecido e marginalizado, a referida portaria excluiu grande número de pessoas inseridas na mesma categoria, excluindo-as do processo de inserção que se pretendeu criar com a reserva de curso especial aos rurícolas.

O e. Tribunal Regional Federal da 4ª Região teve oportunidade de enfrentar o tema, por ocasião da criação do curso especial de medicina veterinária para assentados e filhos de assentados na Universidade Federal de Pelotas, tendo se manifestado nos seguintes termos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONVÊNIO ENTRE INCRA E UFPEL. TURMA ESPECIAL PARA ASSENTADOS EM CURSO DE MEDICINA VETERINÁRIA. O ingresso no curso de Medicina Veterinária da UFPEL, exclusivamente pelas famílias de assentados do INCRA, impõe malferimento ao princípio da igualdade no acesso ao ensino (arts 5º, caput, I e art. 206, VI, CF), não devendo a universidade pública privilegiar determinadas categorias ou segmentos de categorias profissionais. Em questões de políticas públicas cabível a intervenção do Judiciário somente na hipótese de os gastos públicos não atenderem os mínimos existenciais. Por mais elástico que possa ser o campo de atuação conformador da Universidade Federal de Pelotas, do INCRA e da Fundação Privada Simão Bolívar, não se está a tratar de um mínimo existencial, mas de um curso no qual prepondera o método de livre acesso, que é, praticamente, um curso de Medicina, não adequado àquela específica atuação e atividade profissional dos beneficiários. (TRF4, AG 2007.04.00.037679-1, Quarta Turma, Relator Valdemar Capeletti, D.E. 03/03/2008) grifei

De fato, conferir legitimidade ao ato praticado entre INCRA e UFG significa chancelar uma conduta que viola frontalmente o princípio da isonomia.

Este aspecto não passou despercebido ao Ministro Gilmar Mendes que na decisão que indeferiu pedido de suspensão de tutela antecipada formulada pelo INCRA (STA/233) assentou que:

"Os interesses contrapostos, no caso em exame, são relativamente claros. O primeiro deles está baseado no próprio princípio da isonomia. De fato, em primeiro lugar, temos como potencialmente afetado o interesse de todos os demais cidadãos não beneficiados pela medida impugnada. Mais especificamente, temos os demais cidadãos brasileiros, ricos ou pobres, que pleiteiam vagas nas instituições públicas de ensino superior, devendo, para tanto, submeter-se a fatigante e complexo processo seletivo. Não se pode olvidar, ademais, a existência de outros produtores rurais que, conquanto não beneficiados pelo programa nacional de reforma agrária, também carecem de uma maior atenção do Estado, uma vez que se encontram em situação em muito similar à dos assentados. (Grifei)

Portanto, há que se reconhecer a inconstitucionalidade e ilegalidade da criação de curso jurídico com destinação exclusiva aos beneficiários da reforma agrária e aos tutelados pela lei 11.326/2006, razão pela qual a extinção do curso criado pelo Conselho Universitário da Universidade Federal de Goiás através da resolução CONSUNI nº 18/06, de 15 de setembro de 2006 (fl. 1.444), é medida que se impõe.

Da vedação de criação de novos cursos

Postula, finalmente, o Ministério Público Federal, que a Universidade Federal de Goiás seja impedida de criar qualquer curso de ensino superior que tenha forma de ingresso diversa da aprovação em vestibular aberto a todos que preencham as condicionantes legais.

Tal pleito, todavia, não merece acolhida.

As Universidades gozam de autonomia didáticocientífica e administrativa e consoante disposto na lei de diretrizes e bases da educação têm a prerrogativa da criação, organização e extinção de cursos (art. 53, da lei nº 9.394/96), sendo possível, ainda, a adoção de outras modalidades de seleção, diversos do tradicional vestibular, cabendo apenas à instituição de ensino obediência às normas legais e constitucionais pertinentes.

Assim, a proibição genérica e abstrata à criação de cursos não é tarefa afeta ao poder judiciário, que deve apreciar in concreto, mediante provocação de qualquer legitimado, eventual violação à normas legais ou constitucionais, como no caso presente, para o controle jurisdicional dos atos administrativos.

Portanto, inviável a acolhida ao pleito de suspensão ou vedação da criação de qualquer curso pela Universidade Federal de Goiás.

Da boa-fé do corpo discente

Não obstante o reconhecimento da ilegalidade na criação do curso e na necessária extinção do mesmo, há que se reconhecer a boa fé do corpo discente que não teve qualquer participação na elaboração do convênio entre o INCRA e a UFG.

Com efeito, consoante se verifica da vasta documentação juntada aos autos, foi instaurado inquérito civil público para apurar a regularidade dos projetos de criação de cursos destinados a segmentos específicos da sociedade (PR/GO nº 1.18.000.008340/2006-92) através da portaria 51/2006, de 31/05/2006.

Durante o trâmite do referido inquérito, foi colhida manifestação favorável da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo sido determinado o arquivamento do mesmo, com parecer favorável do MPF à criação do curso objeto da presente ação (29/11/2006).

Em conseqüência, foi realizado processo seletivo conforme edital 02/2007 que logrou aprovar 60 (sessenta) candidatos ao curso (fls. 1862/1925), tendo as aulas se iniciado no segundo semestre de 2007.

Atualmente o curso se encontra em pleno desenvolvimento, tendo os alunos concluído com aproveitamento diversas disciplinas.

Assim, há que se reconhecer a validade dos atos praticados até então, somente no que concerne ao aproveitamento de tais disciplinas, na forma prevista nos estatutos das instituições de ensino onde se postule a conclusão do curso.

De fato, a extinção pura e simples do curso, sem a ressalva dos atos validamente praticados, não encontraria suporte nos postulados de justiça e não atenderia ao interesse público e social, mormente pelo fato da criação ter obtido a chancela de instituições relevantes como o Ministério Público Federal e a Ordem dos Advogados do Brasil.

Portanto, de forma a assegurar validade dos atos acadêmicos praticados durante a realização do curso, reconheço a boa-fé do corpo discente, e determino que a extinção do curso se dê ao termino do semestre letivo.

DISPOSITIVO

Em face do exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial (art. 269, I, do CPC), para:

a) declarar a ilegalidade do convênio estabelecido através da Portaria Conjunta INCRA/P/INCRA/SR(04)GO/UFG Nº 9, de 17 de agosto de 2007 e da utilização de recursos do PRONERA para custeio de curso superior em direito;

b) determinar a extinção do curso de graduação em direito criado através da Resolução CONSUNI nº 18/06, de 15 de setembro de 2006;

c) ressalvar a validade das atividades acadêmicas integralizadas pelo corpo discente e assegurar a conclusão do semestre letivo em curso.

Sem condenação em custas e em honorários advocatícios (Lei n° 7.347, art. 18).

Registre-se. Publique-se. Intimem-se.

Sentença sujeita ao duplo grau de jurisdição (art. 475, I, do CPC).

Goiânia, 15 de junho de 2009.

Juiz Roberto Carlos de Oliveira
9ª Vara Federal



JURID - Ação civil publica. MPFxINCRA. [03/07/09] - Jurisprudência

 



 

 

 

 

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